O Direito à Moradia Adequada Temporária dos Grupos Refugiados: por uma cidade do Rio de Janeiro cidadã

Boletim nº 85, 04 de abril de 2025

Pedro Teixeira Pinos Greco

Pós-doutorando em Direitos Humanos e Políticas Públicas pelo NEPP-DH/UFRJ. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.

 

Introdução

 

O presente texto objetiva estudar o tema das pessoas refugiadas que estão inseridas no território urbano da cidade do Rio de Janeiro, com ênfase nas discussões em torno do direito à moradia adequada, em um viés temporário1.

Busca-se dar maior visibilidade à pauta dos refugiados urbanos que devem ter a seu favor agendas que atendam ao seu Direito Humano de moradia adequada temporária2, o que solidificaria o seu exercício da cidadania, como apresenta Roberto Damatta3.

Neste sentido, é importante acentuar que as discussões em torno da noção têm sido sempre de caráter jurídico-político-moral, quando ela também comporta uma dimensão sociológica básica, já que ser cidadão (e ser indivíduo) é algo que se aprende, e é algo demarcado por expectativas de comportamento singulares. O que é deveras extraordinário aqui é o grau de institucionalização política do conceito de cidadão (e de indivíduo), que passou a ser tomado comum dado da própria natureza humana, um elemento básico e espontâneo de sua essência, e não um papel social. Ou seja: algo socialmente institucionalizado e moralmente construído.

Como observação prévia, aclara-se que a expressão “grupos refugiados” abarca tanto os refugiados4, quanto os solicitantes de refúgio5, como realça Liliana Lyra Jubilut6,.  Esses dois grupamentos de refugiados estão em situação de vulnerabilidade potencializada, como ressaltam Hannah Arendt7 e Nathalia Penha Cardoso de França8 , o que justifica a obrigatoriedade de se conduzir melhores políticas públicas para essas populações.

É comum que esse público saia do seu país natal ou do Estado onde habitava com poucos recursos e, ao chegar no Brasil e no Rio de Janeiro, careça de apoio, infra estrutura, acesso à renda e informação para poder usufruir de uma vida digna, como atestaram Letícia Baquião Goularte, Maria Carolina Gervásio Angelini de Martini, Maria Clara Ribeiro Andare e Priscilla Teodoro Angarani9.

 Trata-se de assunto de crescente significância estatística, como pontuam Clarisse Laupman Ferraz Lima e Jessica Sarue Kruger10, dado que o Brasil recebe um número avultado de pessoas refugiadas, reforçando a necessidade de se estudar a fundo essa questão.

Conforme o documento: “Refúgio em Números 2022”11 , entre 1997 e 2022 o nosso país analisou 300.819 (trezentas mil e oitocentos e dezenove) solicitações de refúgio, a demonstrar a importância numérica e, por consequência, social do tema aqui analisado.

A metodologia da pesquisa utiliza o raciocínio indutivo e lógico, feito a partir de uma apreciação humanitária da Constituição da República de 198812, em relação aos coletivos refugiados, como destacam Nádia Floriani e Ivete Maria Caribé da Rocha13, utilizando uma perspectiva transdisciplinar característica do campo  urbanístico, como explanou Alex Magalhães14. São também analisadas  as leis brasileiras, os documentos internacionais e os atos infralegais, tanto das migrações, quanto do meio urbano, para que entender como o Rio de Janeiro se coloca diante dessas questões.

A pesquisa se apoia, ainda, nas ideias  de Helion Póvoa Neto15, que se debruça sobre a mobilidade transnacional de maneira humanitária, rechaçando conceitos xenofóbicos e racistas imigratórios, bem como  a criminalização presumida dos grupos refugiados, em posição compartilhada  por Iréri Ceja, Soledad Álvarez Velasco e Ulla D. Berg16. Em suma, objetiva-se colocar o assunto na ordem do dia, para que se possa criar e/ou aprimorar nossas políticas públicas urbanas de moradia adequada temporária direcionada especificamente para os refugiados e para os solicitantes de refúgio que habitam na cidade do Rio de Janeiro.

O Direito à Moradia Adequada Temporária e os Direitos Humanos

O acesso à moradia adequada temporária consiste em um direito que contribui para a redução das situações de vulnerabilidade e para o reforço  da cidadania, como ecoa Immanuel Kant17. O tema será abordado com foco na situação de  refugiados e solicitantes de refúgio que estão em perímetros urbanos.

A esse respeito, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados18 “reconhece que mais da metade dos refugiados e solicitantes de refúgio mundiais vivem em áreas urbanas e periferias, e que a habilidade dos mesmos para conviverem pacificamente nessas cidades é fundamental para seu bem-estar”. André Luiz Morais Zuzarte Bravo19 ratifica a urgência em conectar a temática do refúgio aos estudos urbanos :

Afinal, refugiados urbanos não são apenas refugiados, mas também, e principalmente, habitantes do espaço urbano. Sendo assim, é necessário diálogo com estudos que examinam processos e experiências de marginalização, exclusão e controle nas cidades bem como de resistência, subversão e contestação, como forma de permitir a elaboração de novo espaço conceitual para além do léxico tradicional associado à questão do refúgio. Este movimento tem ganhado força nos últimos anos com o aumento de estudos, muitos de caráter etnográfico, que iluminam como fatores existentes em contextos locais específicos se interseccionam com a condição refugiada no dia-a-dia.

Os escritores Daniel Chiaretti e Fabiana Galera Severo,20 caracterizam o direito à moradia adequada, em sentido dilatado, como um Direito Humano dos agrupamentos refugiados, com o qual não podemos negociar. Na mesma direção  Letícia Marques Osório21 entende como  dever inescusável de todos os entes públicos (municipal, estadual e federal) garantir o direito à moradia adequada, em todas as suas formas, para as populações em situação de vulnerabilidade, o que incluiria os grupos refugiados. Nesse sentido, o direito à moradia adequada, lato sensu, é uma questão a ser enfrentada pelos gestores públicos de todas as esferas, como preconiza o art. 23, IX, da Constituição Cidadã: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. Nada obstante esse arcabouço jurídico favorável, que combate o déficit habitacional e que defende  um incremento das moradias, nossas cidades mantêm padrões de  exclusão social e de falta de cidadania, como anota Ronaldo Coutinho22.

Para fazer frente a esses obstáculos, deve-se invocar  o art. 1º, III (dignidade da pessoa humana); art. 6º, caput (direito à moradia como direito social) ambos, da CR/88, o art. 2º, I do Estatuto da Cidade23 e o art. 3º, XI da Lei de Migração24 (Lei 13.445/2017), porquanto eles, aliados a outros parâmetros internacionais, a exemplo dos arts. 14 e 21 da Convenção relativa ao Status dos Refugiados de 195125 e do Comentário Geral 04 do Comitê de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais das Organizações das Nações Unidas (ONU)26 consagram o direito à moradia adequada temporária como Direito Humano de todos, independentemente dos status imigratórios das pessoas, em análise corroborada por Ingo Sarlet27.

Por sua vez, no que diz respeito ao universo legal dos refugiados, cabe  elogiar (com parcimônia) o Estatuto dos Refugiados28 (Lei 9.474/1997) no que toca ao procedimento para se declarar o status de refugiado. Por outro lado, cabe criticar essa normativa pátria que poderia ter sido mais ousada em assegurar explicitamente mais e melhores Direitos Humanos, como pontuou Pedro Teixeira Pinos Greco30.

Em resumo, reforça-se a posição  de Liliana Lyra Jubilut e Silvia Menicucci Apolinário31, que defendem um aprimoramento desse nosso sistema de defesa dos Direitos Humanos dos coletivos refugiados, visando regras que não sejam meramente programáticas e com pouco conteúdo transformador.

 

Conclusão

A pesquisa envolvendo coletivos refugiados deve se atentar à sua condição peculiar: são pessoas em situação de vulnerabilidade potencializada pela sua condição migratória transnacional, somada às  dificuldades para exercer o direito à moradia adequada temporária. Assim, tem-se um caso de convergência de debilidades que deveriam chamar a atenção dos gestores públicos e dos legisladores das nossas três instâncias governamentais.

Para além disso, a falta ou a pouca atenção ao tema do direito à moradia adequada temporária sugere que ele não esteja entre  as prioridades das nossas autoridades constituídas. Falta igualmente uma  maior coordenação entre as esferas públicas federal, estadual e municipal, para que se auxiliem mutuamente em uma lógica de cooperação federativa, visando à moradia adequada temporária dos públicos refugiados. Outro obstáculo para avançar nesse assunto é a falta de conhecimento em relação ao instituto da moradia adequada temporária dos refugiados e solicitantes de refúgio, uma vez que a questão é entendida como gasto e não como exercício da cidadania.

Ademais, outro gargalo é a falta de contundência das Leis, que às vezes se limitam a criar dispositivos que não têm a força de alterar a realidade urbanística. Aliado a essa questão, está a falta ou o pouco preparo dos servidores públicos, sem contar na ausência ou nos baixos números de moradias adequadas temporárias que sejam especializadas no atendimento de coletivos refugiados. Diante disso, a União, o Estado e o Município do Rio de Janeiro deveriam construir e manter como uma política de estado e não de governo, casa(s) de acolhida para expandir o direito à moradia adequada temporária, a exemplo do que já acontece com a “Casa de Passagem Terra Nova” e a “Casa de Acolhida Papa Francisco”.

Como se nota dessa exposição, existem boas ideias para assegurar e melhorar as moradias adequadas temporárias dos refugiados. Não obstante, precisa-se articular melhor essa temática, uma vez que  a cidade do Rio de Janeiro não parece estar preparada para tratar com a devida premência do direito à moradia adequada temporária como um atributoda cidadania dos grupos refugiados.

 

1 Nesse texto não será tratado do tema do direito à moradia adequada em um viés duradouro, dado que esse tema por si só, devido a sua complexidade e riqueza de detalhes, mereceria um texto exclusivo,  destinado a esmiuçar as suas peculiaridades.

2 Não se deve hierarquizar a moradia adequada temporária em relação à moradia adequada duradoura, uma vez que as duas têm a sua importância, sendo que cada uma deve cumprir o seu papel e por isso as duas devem ser vistas como etapas diferentes do direito à moradia adequada, sem qualquer tipo de gradação de relevância.

3 A cidadania nesse texto é concebida de forma mais ampla quando compararmos com a definição de cidadania prevista na Constituição da República de 1988 que somente alcança a cidadania política que seria o direito a votar e a ser votado em eleições para os cargos do Executivo e do Legislativo. Desse modo, a concepção adotada de cidadania engloba uma amplitude acentuada o que inclui para o cidadão a posse de três tipos de direitos: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Dado essa colocação é imprescindível a busca por uma participação ativa dos cidadãos para que eles sejam protagonistas das suas histórias, repulsando a pouca organização civil ao mesmo tempo que se objetiva a transformação positiva dos problemas sociais. Cf. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

4 Esse grupo já possui a seu favor uma decisão das autoridades brasileiras reconhecendo o status de refugiado.

5 Esse agrupamento já deflagrou o procedimento de refúgio, requerendo o reconhecimento de refugiado, contudo, esse trâmite ainda não se finalizou, conferindo apenas a essas pessoas a qualidade de solicitante de refúgio até que o processo termine e as autoridades do Brasil declarem o status de refugiado ou não.

6 JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007. p. 182.

7 ARENDT, Hannah. Nós, os refugiados. Portugal: Universidade da Beira Interior Covilhã, 2013. p.7-8.

8 FRANÇA, Nathalia Penha Cardoso. A exceção e a teoria do inimigo no Direito Internacional dos Refugiados. Anais do XVIII Congresso Brasileiro de Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner (org.) Direito Internacional em Expansão: Volume 19. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2020. p. 189/190.

9 GOULARTE, Letícia Baquião; MARTINI, Maria Carolina Gervásio Angelini de; ANDARE, Maria Clara Ribeiro.; ANGARANI, Priscilla Teodoro. A vulnerabilidade dos refugiados: uma análise da situação dos refugiados antes e durante a pandemia do coronavírus. Cadernos Eletrônicos Direito Internacional sem Fronteiras, v. 2, n. 2, 31, p. 1-25, p. 12.

10 LIMA, Clarisse Laupman Ferraz e KRÜGER, Jessica Sarue. Novos refúgios: o reconhecimento prima facie como instrumento de transformação. Caso Brasil Venezuela. Anais do XVIII Congresso Brasileiro de Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em Expansão: Volume 18. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2020, p. 266.

11 JUNGER, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo;  OLIVEIRA,  Tadeu de; SILVA, Bianca G. Refúgio em Números (7ª Edição). Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2022. p. 10.

12 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 07 abr 2023.

13 FLORIANI, Nádia P. e ROCHA, Ivete Maria Caribé da. Aspectos das migrações recentes no Paraná (Brasil): Dinâmicas sociais, jurídicas e limitações das políticas públicas. In: SANTOS, Gislene; FLORIANO, Nádia P. (orgs.) Migrações na América Latina contemporânea: processos e experiências humanas. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. p.57.

14 MAGALHÃES, Alex. O Direito das Favelas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. p. 14.

15 PÓVOA NETO, Helion. O erguimento de barreiras à migração e a diferenciação dos “direitos à mobilidade”. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum, v. 16, p. 394-400, 2008. p. 396/397.

16 CEJA, Iréri, VELASCO, Soledad Álvarez e BERG, Ulla D. Futuro de las migraciones. In: CEJA, Iréri; VELASCO, Soledad Álvarez; BERG, Ulla D. (coords.). Migración. Ciudad de México: UAM, Unidad Cuajimalpa; Ciudad de Buenos Ares, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2021. p. 110-111.

17 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. 2 Ed. São Paulo: Cone editora, 1993. p. 202.

18 ACNUR. Construindo Comunidades de Prática para Refugiados Urbanos – Relatório da Mesa Redonda do Brazil. ACNUR Brasil, 2015, p. 2.

19 BRAVO, André Luiz Morais Zuzarte. Entre a criminalização e a vitimização: Refugiados urbanos nas políticas do ACNUR. Rev. Carta Inter., v. 15, n. 2, p. 213-237, 2020. p. 233.

20 CHIARETTI, Daniel e SEVERO, Fabiana Galera. Comentários ao Estatuto dos Refugiados. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018. p. 19.

21 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à moradia adequada na América Latina. In: ALFONSÍN, Betânia de Moraes; FERNANDES, Edésio (orgs). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. 2 tiragem. Belo Horizonte: Fórum, 2006. p. 36.

22 COUTINHO, Ronaldo. A mitologia da cidade sustentável no capitalismo. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (coords.). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 27.

23 BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/ l10257.htm>. Acesso em: 07 abr 2023.

24 BRASIL. Lei 13.455, de 24 de maio de 2017. Disponível em: <https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445. Acesso em: 07 abr 2023.

25 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção relativa ao Status dos Refugiados de 1951. Genebra, 1951. Disponível em: <https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Conven- cao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf>. Acesso em: 07 abr 2023.

26 UNITED NATIONS. Committe on Economical, Social and Cultur- al Rights. General Comment No 04: The Right To Adequate Housing. Geneva, 1991. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/0/469f4d91a9378221c12563ed0053547e>. Acesso em: 07 abr 2023.

27 SARLET, Ingo. Algumas notas sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia como direito de defesa aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. In: ALFONSÍN, Betânia e FERNANDES, Edésio (org.) Direito à moradia adequada. O que é, para quem serve, como defender e efetivar. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. p. 270/271.

28 BRASIL. Lei 9.474, de 22 de julho de 2017. Disponível em: <https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm>. Acesso em: 07 abr 2023.