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Tecnologia em defesa do território: Geração cidadã de dados e monitoramento territorial independente na região Amazônica
Publicado em 09/09/2025
CATEGORIAS: Boletim IPPUR, Destaques
Boletim nº 89, 10 de setembro de 2025
Tainá Farias da Silva Maciel
Mestranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)
Lalita Kraus
Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do grupo de pesquisa RASTRO (www.rastroufrj.com.br )
Flávio Carvalho Silva
Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)
O avanço das Tecnologias da Informação e Comunicação, que ganhou força após a difusão da internet comercial, gerou uma onda de entusiasmo ao abrir um vasto leque de possibilidades em termos de comunicação irrestrita, horizontalidade, participação e colaboração em escala global. No entanto, nos dias de hoje, inúmeros desafios põem em xeque o otimismo inicial. Como argumenta o teórico Evgeny Morozov (2018, p. 15): “A aldeia global jamais se materializou – em vez disso, acabamos em um domínio feudal, nitidamente partilhado entre as empresas de tecnologia e os serviços de inteligência”.
A vida social na contemporaneidade é dataficada¹. Tecnologias cada vez mais pervasivas e ubíquas se integram a todas as relações humanas, operando uma vasta quantidade de dados que são capturados, armazenados e analisados em alta frequência. Esse processo é marcado por profundas desigualdades, pois grandes empresas privadas exercem controle sobre as tecnologias, aprimorando constantemente suas técnicas de coleta e processamento de informações. Dessa forma, dá-se início a era de apropriação e exploração de um recurso inédito: os dados.
O mercado baseado na captura em massa de informações gerou um novo modelo de exploração denominado colonialismo digital ou colonialismo de dados (Couldry; Mejias, 2019). Essas expressões fazem analogia ao colonialismo clássico, que se caracterizou pela ocupação territorial e controle econômico, cultural e político, com base na exploração predatória de recursos. As práticas colonialistas são reprodutoras de uma racionalidade moderna que provoca impactos excludentes, injustos e violentos. Uma racionalidade que, como no caso da usina hidrelétrica de Belo Monte (Altamira/PA)², do Projeto Grande Carajás/PA³ e da biopirataria da seringueira⁴, em nome do desenvolvimento opera como uma “tecnologia para produzir pobreza” (Krenak, 2022) e um “brutalismo” que produz fraturas sociais e ambientais (Mbembe, 2022). Na contemporaneidade, as lógicas extrativistas persistem, manifestando-se também na dependência tecnológica das nações do Sul global em relação às corporações do Norte, priorizando os interesses dessas empresas em detrimento das comunidades locais.
Na região amazônica isso se reflete no avanço de práticas de controle tecnopolítico do território por grandes corporações. A ocupação da região se dá também de forma simbólica pela apropriação indevida do domínio “.Amazon”, concedido em 2019 à empresa homônima, o que resulta na privatização do uso do nome na internet⁵. Outra face desse modelo de rapinagem baseado em dados é o risco da digitalização da natureza e dos conhecimentos ancestrais, especialmente quando essa digitalização serve à transformação desses elementos em produtos rentáveis⁶. Considerando o domínio das big techs e a dependência tecnológica no sul global, a digitalização em regiões como a Amazônia pode favorecer a consolidação de um poder que, ao converter informações e fenômenos em dados, visibiliza o que pretende controlar e dominar. A tecnopolítica do dado, quando está à serviço da lógica de acumulação da economia dataficada, provoca efeitos nefastos no território. Isso nos faz perguntar: dados para que? Dados para quem?
A dependência tecnológica na Amazônia é ainda mais acentuada, já que é uma das regiões menos conectadas do país, com apenas 11% da população apta a exercer plenamente sua cidadania no ambiente digital. Nesse contexto, em janeiro de 2022, durante o governo Bolsonaro, a Starlink, um serviço de internet de alta velocidade via satélite desenvolvido pela empresa SpaceX do empresário Elon Musk, foi autorizada a operar no país. A tecnologia da Starlink proporciona internet via satélite com baixa latência, tornando-se uma alternativa essencial de conectividade em áreas remotas, onde a infraestrutura tradicional de telecomunicações é limitada ou até inexistente. Além disso, a facilidade dessa conexão, que exige apenas a instalação de uma pequena antena e um modem, fez com que a Starlink assumisse a liderança no mercado de internet banda larga na Amazônia Legal.
Figura 1. Acordo entre Jair Bolsonaro e Elon Musk. Fonte: Agência Brasil, Clauber Cleber Caetano/PR.
O caso da Starlink na Amazônia revela inúmeras contradições. Por um lado, a tecnologia ampliou o acesso a serviços e direitos para populações historicamente afetadas pela exclusão digital. Por outro lado, o direito à conexão nessas condições acaba por fragilizar o território, fortalecendo injustiças sociais. O acesso à internet, por exemplo, facilitou o trabalho de garimpeiros e traficantes da região⁷, fortalece o monopólio da empresa e levanta questões preocupantes sobre soberania nacional e segurança dos dados, devido sobretudo ao caráter estratégico da região. Nesse contexto, a defesa do território amazônico exige intervenções públicas, tais como o desenvolvimento de infraestrutura públicas digitais⁸, a expansão da rede de fibra ótica e/ou conexão por cabos aquáticos, o investimento em servidores nacionais e a garantia da comunicação criptográfica para garantir a segurança de ativistas e comunidades indígenas, entre outros.
Figura 2. Antena da Starlink instalada em meio a garimpo no Rio Mucajaí, na Terra Indígena Yanomami. Fonte: UOL.
Se, por um lado, o cenário tecnopolítico atual na Amazônia destaca a centralidade econômica dos dados, impulsionando práticas neoextrativistas que, ao mapear o território, também exercem controle sobre ele; paralelamente, observamos apropriações subversivas da tecnologia para o bem comum e para a defesa territorial. Isso significa reconhecer que não existe a separação entre agência humana e esfera técnica, reiterando a procedência social das interpretações tecnológicas em disputa (Feenberg, 2004; Latour, 1994).
Existe uma gama de ações e práticas cosmotécnicas (Hui, 2020) que são mobilizadas de forma comunitária e independente para garantir o reconhecimento e a proteção do território amazônico. A cosmotécnica reflete a técnica como expressão de valores, saberes e visões de mundo, extrapolando a unicidade da tecnologia dominante. Observamos, portanto, práticas sociais contestatórias que usam a tecnologia para a geração imanente de dados e para o monitoramento territorial independente.
O Observatório do Marajó⁹, por exemplo, é uma organização da sociedade civil que desde 2020 articula dados e saberes tradicionais para promover a participação social na defesa e proteção das comunidades tradicionais, ribeirinhas, quilombolas e extrativistas da Ilha do Marajó (Belém – PA), a maior Ilha Fluviomarítima do mundo e uma das regiões mais biodiversas do Brasil.
Um dos projetos é o monitoramento das calamidades climáticas10 que afetam cada vez mais o cotidiano dos moradores do Marajó. Por meio da escuta e do diálogo coletivo com lideranças e moradores dos 17 municípios marajoaras, foi elaborado um conjunto de indicadores, que busca complementar os indicadores governamentais, os quais não conseguem representar a degradação social e ambiental da ilha. Trata-se de “indicadores vivos” capazes de testemunhar, visibilizar e narrar as injustiças socioambientais locais (Kaika, 2017).
Tabela de indicadores da calamidade climática no Marajó
Fonte: Elaborado pelos autores com dados do Observatório do Marajó (2023/2024).
Os indicadores elaborados consideram as intempéries e problemas infraestruturais específicos dos ciclos sazonais naturais do território marajoara (inverno e verão), servindo como parâmetro para fiscalizar a eficácia, as deficiências e/ou limitações de políticas e programas de mitigação e adaptação às vulnerabilidades socioambientais, intensificadas pelas mudanças climáticas.
Figura 3. Mapa das queimadas no Marajo em 2024. Fonte: Instagram do Observatório do Marajó.
O reconhecimento das experiências e particularidades locais é um dos princípios centrais que orientam o movimento ativista conhecido como Geração Cidadã de Dados (GCD)11. A proposta da GCD é incentivar que os próprios cidadãos, principalmente as populações tradicionais e periféricas, passem a gerar, coletar e se apropriar ativamente dos dados, utilizando-os em benefício de suas comunidades. Esse processo visa a produção de contra-narrativas que possam revelar o que os dados governamentais, hegemonicamente reconhecidos como oficiais, não contam – ou não querem contar.
É também por meio da geração cidadã de dados que grupos indígenas de territórios da Amazônia Legal estão defendendo os seus territórios de grilagem, desmatamento e garimpos ilegais, como no caso da plataforma de monitoramento dos povos indígenas isolados (Mopi)12 desenvolvida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) em parceria com o Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi)13 e com a Operação Amazônia Nativa (Opan). A Mopi, que na língua Zo’é, um dos troncos do tupi-guarani, significa algo próximo de “fazer ferroar” e na língua dos povos Wayana “planta-medicina”, é uma ferramenta de vigilância cidadã que surge com o duplo propósito de defender e curar14 a terra indígena ao mesclar informações de bancos de dados públicos com levantamentos territoriais produzidos de forma comunitária e independente. A integração de tecnologias ancestrais de orientação geográfica à instrumentos digitais, como drones e smartphones, possibilita a coleta de dados mais fidedignos sobre as vulnerabilidades experienciadas por povos indígenas isolados. Além disso, o monitoramento independente permite decidir o que será revelado ou mantido em sigilo, como, por exemplo, ocultar as coordenadas exatas de territórios isolados para reduzir o risco de ataques contra essas áreas.
Por um lado, a experiência na região amazônica revela os limites de um modelo tecnopolítico dominado pela lógica neoextrativista, mas, por outro lado, as experiências de tecnoresistência na Amazônia revelam que a tecnologia é passível de disputas e controle social. Por meio da GCD, essas comunidades exercem um protagonismo digital que subverte a lógica tecnológica hegemônica e fortalece sua autonomia territorial. A fragilidade da infraestrutura digital na região, no entanto, revela a necessidade de uma soberania tecnológica que também inclua as cosmotécnicas populares, permitindo caminhos tecnopolíticos mais justos em defesa do território como um bem comum primordial.
REFERÊNCIAS
COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises A. Data colonialism: Rethinking big data’s relation to the contemporary subject. Television & New Media, v. 20, n. 4, p. 336-349, 2019.
FEENBERG, Andrew. Teoria crítica da tecnologia. Piracicaba: Unimep, 2004.
HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
KAIKA, Maria. ‘Don’t call me resilient again!’: the New Urban Agenda as immunology… or… what happens when communities refuse to be vaccinated with ‘smart cities’ and indicators. Environment and urbanization, v. 29, n. 1, p. 89-102, 2017.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
MBEMBE, Achille. Brutalismo. 2 ed. [s.l.] N-1 Edições, 2022.
MOROZOV, Evgeny. Big tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
1 https://www.foreignaffairs.com/articles/2013-04-03/rise-big-data.
2 https://tab.uol.com.br/edicao/belo-monte/.
4 https://revistapesquisa.fapesp.br/as-sementes-da-discordia/.
6 https://revistapesquisa.fapesp.br/as-sementes-da-discordia/.
8 https://itsrio.org/pt/publicacoes/relatorio-infraestruturas-digitais-publicas/
9 https://medium.com/observat%C3%B3rio-do-maraj%C3%B3.




