Lições da “coronacrise” para a guerra contra a pobreza e as desigualdades

Boletim nº 15 – 10 de abril de 2020

 

Por Cassiano José Bezerra Marques Trovão¹

 

Parece ser consenso que a humanidade vive um período equivalente ao dos tempos de guerra, travando batalhas diárias contra a expansão de um inimigo que, nesse caso, é comum a todos, o coronavírus. Diversos economistas, de distintas matrizes, presidentes, políticos em geral, cientistas e profissionais da saúde parecem concordar com a ideia de que situações extremas exigem medidas extremas.

Tem-se discutido largamente as opções à disposição do Estado em sua tentativa de amenizar os impactos da crise. No campo monetário, as opções, atualmente sem qualquer restrição, extrapolam as políticas monetárias de Quantitive Easing utilizadas na crise de 2008 em magnitude quanto à injeção de liquidez e no escopo das linhas de empréstimos diretos do Banco Central a empresas não-financeiras. No âmbito fiscal, as opções de política vão da elevação do gasto público financiado pelo aumento do endividamento ou a impressão de dinheiro até a redução ou suspensão de impostos para setores chave. O destaque vai para a magnitude dos pacotes orçamentários para grandes empresas, além da promoção de transferências de renda para as famílias.

Todas essas medidas têm por objetivo suavizar os choques negativos de oferta e de demanda, financeiros e cambiais que marcam uma crise socioeconômica do ponto de vista do emprego e da renda e cuja origem não é econômica, mas sim sanitária.

As medidas recomendadas pela OMS e seguidas pelos mais de 199 países para conter a pandemia afetam diretamente a atividade econômica, tanto pelo lado da oferta, levando à diminuição de parte da produção, o que gera preocupação do ponto de vista do faturamento, da lucratividade das empresas e da descontinuidade na cadeia de produção a partir da quebra de setores inteiros responsáveis pelo fornecimento de insumos, quanto pelo lado da demanda, devido à redução do emprego e da renda. Isso fez com que, nesse debate, se vislumbrasse uma dualidade: salvar vidas ou salvar a economia.

Ainda que as preocupações sejam racionais e importantes, a dicotomia é falsa, senão vejamos:

Primeiro, é razoável pensar que, como o modo de produção capitalista depende da existência de pessoas consumindo, então seria necessário que essas pessoas estivessem vivas para fazê-lo. Também é razoável pensar que, para adicionar valor aos insumos no processo de produção, o capitalismo utilize uma mão de obra saudável e produtiva. Um estudo recente desenvolvido por Correia et al (2020) demonstrou, à luz do caso da pandemia de influenza de 1918, que medidas restritivas de contato social, como as defendidas pela OMS, levadas a cabo por diversos estados americanos na época, não provocaram recessões diferentes daqueles que não as implementaram. Pelo contrário, além de não apresentarem um pior desempenho econômico no curto prazo, esses estados reduziram significativamente a mortalidade e, também, permitiram que suas economias crescessem mais rapidamente que a dos demais, saindo mais rapidamente da crise.

Nessa mesma linha, Greenstone and Nigam (2020) simularam os impactos de propagação e mortalidade do COVID-19 nos Estados Unidos, e projetaram que a imposição de 3 ou 4 meses de distanciamento a partir do final de março de 2020 salvaria aproximadamente 1,7 milhão de vidas até 1º de outubro. A ideia dos autores é mostrar que, apenas ao não sobrecarregar as unidades de terapia intensiva dos hospitais, 630 mil pessoas poderiam ser salvas, mas, mais que isso, é evidenciar que os benefícios macroeconômicos advindos do fato de se poupar milhões de vidas alcançariam cifras em torno de US $ 8 trilhões. Portanto, salvar vidas é salvar a economia.

Segundo, se passamos por uma situação equivalente à de guerra, e não meramente uma crise financeira e produtiva, então esse é um contexto em que se deve admitir que o Estado deva desempenhar um papel central na coordenação e no financiamento desse esforço de guerra. Isso poderia soar como algo que teria um espaço entre aqueles que se associam à heterodoxia econômica. Porém, o conservadorismo econômico foi obrigado, mais uma vez, a recorrer à defesa do papel intervencionista do Estado que tanto rejeitam em épocas de bonança. O que não se discute, de fato, é que o papel do Estado seja central nesse contexto.

Um elemento que tem ganhado destaque nesses tempos de calamidade humana diz respeito à possibilidade e à necessidade de se promover um processo de conversão industrial. Nesse processo, indústrias passariam a deslocar seu escopo original, como a produção de automóveis, para a fabricação de ventiladores respiratórios para equipar hospitais ou a transformação de hotéis subutilizados nesse momento em leitos de hospitais de campanha para atender ao número crescente de pessoas infectadas pelo coronavírus. O que é bastante similar, do ponto de vista qualitativo, ao “Arsenal da Democracia” de Roosevelt para a Segunda Guerra Mundial.

Tais medidas serviriam, se bem pensadas e implementadas, ao propósito de auxiliar na tarefa de mitigar os efeitos da pandemia no âmbito da preservação da vida e, concomitantemente, reduzir os danos à vida econômica da sociedade humana pela manutenção da produção essencial, alterando a composição do produto em benefício dos bens e serviços de atendimento à saúde.

Essa parece uma ideia excepcional que emerge em um momento de guerra contra um inimigo comum, quando todos (progressistas ou conservadores) estão interessados em resolver o duplo problema de salvar vidas e a economia. A distinção entre uma economia em estado bélico de guerra e a economia na atual conjuntura é que, no esforço da guerra armada, o aumento dos gastos com armamentos tende a conduzir a economia ao pleno emprego, já no atual contexto, a economia se mostra em recessão global, com elevada capacidade ociosa, em tendência depressiva, justamente pela necessidade de restringir o convívio social e as medidas e esforços para ampliar a infraestrutura de atendimento à saúde não tem a mesma dimensão que aquela do esforço de guerra.

No entanto, a sociedade capitalista, desde a sua concepção, apresenta características estruturais e históricas como a pobreza e as elevadas desigualdades em múltiplas dimensões, que sempre apontaram para a necessidade de um consenso em torno do poder do Estado para mitigar ou eliminar essas características que destroem vidas e excluem pessoas além de bloquear o desempenho econômico.

A “Coronacrise”, como muitos a tem chamado, lança uma luz importante sobre outros problemas da nossa sociedade quanto a sua organização produtiva. Quando se pede para fazer quarentena e o isolamento de pessoas, percebe-se que isso faz muito sentido para famílias que, primeiro, tenham uma casa para se isolar e, segundo, que essa casa seja suficientemente grande para que o isolamento funcione. Quando se pede para que as pessoas lavem as mãos com água e sabão em casa, primeiro é necessário que essas pessoas tenham água encanada, e segundo, que elas tenham renda para adquirir o sabão, o que vale para a recomendação de higienização com álcool em gel. O caso brasileiro é emblemático, pois é um país que sequer universalizou o saneamento básico.

De modo bastante claro, esse consenso em torno da necessidade de atuação do Estado, flexibilizando limites fiscais e monetários, em situação de emergência, ou de guerra, como é a crise imposta pela pandemia do coronavírus, precisa virar um consenso em torno da urgência de se lutar a guerra histórica que a sociedade vem travando contra as desigualdades e a pobreza humana. Milhões de pessoas vivem, há décadas, em situação de emergência e calamidade, mas a democracia e todos os direitos cidadãos, contemplados inclusive na Constituição Brasileira de 1988, nos dizem, não cabem no orçamento público.

Não podemos perder de vista que o esforço de guerra coordenado pelo Estado pode ser financiado, para ficar em dois exemplos, pela expansão da dívida pública, uma heresia para os conservadores ou, como contempla a própria Constituição Federal de 1988, pela taxação do patrimônio dos muito ricos. Ademais, nesse esforço, admite-se a possibilidade de o Estado coordenar uma reconversão industrial orientada para a produção de equipamentos necessários para salvar vidas. Então, se isso faz sentido em um momento de crise, é bastante sensato que, em um futuro próximo de paz que certamente virá, pelo menos no que tange ao coronavírus, a sociedade se desprenda das amarras que lhe são impostas pelos políticos e economistas conservadores e exija que esse mesmo Estado utilize esses mesmos instrumentos, ou outros tantos mais, para travar essa guerra histórica contra as desigualdades e a pobreza.

Por fim, fica claro que essa crise trouxe mais uma oportunidade para a sociedade humana continuar avançando em direção à ampliação dos direitos sociais. E a chave dessa oportunidade está em perceber que, se temos capacidade de fazer esse esforço produtivo para enfrentar uma crise sanitária e, ao mesmo tempo, amenizar a crise econômica, elevando a produção do que é necessário para tratar e salvar as pessoas, podemos, então, orientar e coordenar nossos esforços direcionando nossa capacidade produtiva para produzir aquilo que ajudará a reduzir as desigualdades e a pobreza.

Assumindo que desigualdade e pobreza são fenômenos multidimensionais, para enfrentá-los, o Estado precisará financiar e coordenar esse esforço numa guerra futura com o objetivo de expandir a oferta de bens e serviços públicos como saúde, educação, habitação popular, saneamento básico, coleta de lixo, água encanada. Além disso precisará garantir uma renda básica, especialmente em momentos de crise, para aquelas pessoas em situação de fragilidade socioeconômica agravada pelos dissabores da economia e do mercado de trabalho.

Em síntese, reduzir desigualdades e pobreza deve ser visto como um fim e, ao mesmo tempo, um meio para equacionar o problema econômico. Esse argumento é compatível com aquele que afirma que salvar vidas, em tempos de coronavírus, é contribuir para “salvar” a economia.

¹Prof. Dr. do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Notas:

1. Essa é uma versão modificada do dos artigos que foram publicados pela Plataforma Política Social (http://plataformapoliticasocial.com.br/licoes-da-coronacrise-para-a-guerra-contra-a-pobreza-e-as-desigualdades/) e pelo Brasil Debate (http://brasildebate.com.br/licoes-da-coronacrise-para-a-guerra-contra-a-pobreza-e-as-desigualdades/). O autor agradece os comentários dos professores Everton Rosa da UFG e André Lourenço da UFRN.

3. Ver STIGLITZ, Joseph E. et al. Macroeconomics, monetary policy, and the crisis. In the Wake of the Crisis: Leading Economists Reassess Economic Policy, v. 1, p. 31-42, 2012.

4. Georgieva, K. (2020) Policy Action for a Healthy Global Economy. March, 16, 2020. Disponível em: <https://blogs.imf.org/2020/03/16/policy-action-for-a-healthy-global-economy/>

5. Ver New York Times (2020) 5 Takeaways From the Coronavirus Economic Relief Package. March 19, 2020. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/03/19/us/politics/1200-dollar-stimulus-check-coronavirus.html>

6. Correia, Sergio and Luck, Stephan and Verner, Emil, Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu (March 26, 2020). Disponível em:  < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3561560 >

7. Greenstone, M.; Nigam, V. (2020) Does Social Distancing Matter? Instituto Becker Friedman de Economia da Universidade de Chicago. WORKING PAPER · NO. 2020-26. Disponível em:< https://bfi.uchicago.edu/wp-content/uploads/BFI_WP_202026.pdf>

8. Ver Gaspar, V. Mauro, P. (2020) Fiscal Policies to Protect People During the Coronavirus Outbreak. March, 5, 2020. Disponível em: < https://blogs.imf.org/2020/03/05/fiscal-policies-to-protect-people-during-the-coronavirus-outbreak/>

9. Para mais informações sobre políticas de austeridade fiscal e seus impactos econômicos a partir de uma perspectiva conservadora ver Alesina A., Favero, C.A. and Giavazzi, F. (2018) What do we know about the efects of austerity? AEA Papers and Proceedings, vol 108, pages 524-30. Disponível em: < https://www.nber.org/papers/w24246>

10. Ver https://oglobo.globo.com/economia/coronavirus-economistas-defendem-maior-gasto-publico-como-solucao-para-crise-24329074

11. IMF (2020) Policy Steps to Address the Corona Crisis. Policy Paper No. 20/015. March 16, 2020. Disponível em: < https://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2020/03/16/Policy-Steps-to-Address-the-Corona-Crisis-49262>

12. A respeito dos limites impostas pelas amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal, da Regra de Ouro ou do Teto de Gastos definido pela Emenda Constitucional nº 95, ver Dweck, E.; Rossi, P. (2018) Política fiscal para o desenvolvimento inclusivo. Brasil de Amanhã, 2018. Disponível em: <http://pedrorossi.org/wp-content/uploads/2018/03/Texto-final-esther-e-pedro-1.pdf>