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O Rio Piracicaba, onde a exploração impede o peixe de parar

Publicado em 20/10/2025

CATEGORIAS: Boletim IPPUR, Destaques

Boletim nº 90, 20 de outubro de 2025

 

Júlia Natália Souza Gonçalves

Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/IPPUR/UFRJ)

 

Imagem: Rio Piracicaba. Reprodução Folha de São Paulo

 

Desde que o mundo é mundo, a natureza é explorada, em alguns momentos em menor grau e, em outros, em maior intensidade, mas sempre servindo para  alimentar — nos múltiplos sentidos da palavra –, o ser humano. Consequentemente, ela passa a servir de fonte para desenvolvimento econômico das civilizações e, principalmente, ao aderirem ao sistema capitalista, passa a ser vista somente como viabilização para a produção de bens e serviços a atender o mercado – famoso elemento do discurso capitalista – com o objetivo de que as vontades humanas, individuais ou coletivas, sejam satisfeitas.

O resultado dessa milenar exploração é possível ser notado nas mais diversas esferas no mundo contemporâneo, em todas as camadas e contextos sociais. Piracicaba, uma cidade do interior de São Paulo com um pouco mais de 420.000 habitantes, significa “cidade onde o peixe para” em tupi-guarani, fazendo referência ao movimento de piracema dos peixes no rio que leva o mesmo nome. Esse movimento é biologicamente crucial para esses animais, já que a migração anual de peixes rio acima, nadando contra a correnteza, permite que eles encontrem locais seguros e adequados para a reprodução. Nesse período, esses peixes desovam e garantem a perpetuação de suas espécies, permitindo a continuidade do ciclo da vida aquática e, por consequência, a saúde de todo o ecossistema do rio. Contudo, o que era para ser um santuário de vida e renovação, simbolizado no próprio nome da cidade, não passa de um simples exemplo das consequências ambientais e exploratórias vividas pela formação brasileira – e do mundo.

Criada em Piracicaba durante a maior parte de minha vida, vivenciei momentos que revelam as consequências dessa exploração da natureza à cidade, que agrava o efeito estufa e mudanças climáticas também mundialmente. Vendo praticamente todos os dias o Rio Piracicaba ao me deslocar pela cidade, passei a notar que, de forma mais frequente que nunca, ele vira um rio de pedras durante o verão e transborda durante os meses de chuva, afetando o comércio local e – obviamente – afetamdo os animais que vivem do rio e que vivem no rio.

A exploração fica ainda mais evidente quando analisamos os eventos mais recentes. É assustador presenciar, também de forma mais frequente, a morte de peixes no rio devido à poluição industrial. Em 2024, um episódio marcou o noticiário, quando o despejo irregular de melaço de cana-de-açúcar no Rio Piracicaba por uma indústria da região ocasionou a morte por asfixia de 250 mil peixes.

Analisando a formação brasileira, é fácil notar que o ocorrido em Piracicaba não foi um evento isolado, mas que se insere em um padrão histórico de desenvolvimento, que prioriza o crescimento econômico em detrimento da sustentabilidade e preservação da natureza. Desde o início de sua formação, a economia brasileira foi moldada pela exploração intensiva de recursos naturais, desde o momento em que a natureza deixa de ser “propriedade” indígena e passa a servir de sustento à Portugal no período colonial – com a retirada de pau-brasil, cana e ouro. A partir do século XX, essa lógica é intensificada a partir do uso de processos produtivos que geram grandes quantidades de resíduos e poluição, mas sempre andando junto ao desmatamento e a exploração, sinal de que essa busca por produtividade e lucro supera a preocupação com a preservação dos ecossistemas.

Nesse sentido, Ailton Krenak (2019) – grande defensor dos direitos indígenas e conhecido pela sua participação na Assembleia Constituinte de 1988 – critica justamente o capitalismo e o colonialismo na formação brasileira. Em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, Krenak traz uma reflexão sobre a humanidade e a natureza relacionando esses elementos à modernização e ao colonialismo. Segundo ele, a exploração da natureza se dá em favor da retirada ao extremo dos recursos naturais, ação que coloca em risco a saúde do planeta e que, ao insistir nessa lógica de constante extração sem questionar a própria ideia de progresso, estaríamos caminhando rumo ao colapso ambiental. No mesmo livro, o autor questiona a alienação humana da natureza para atender à produção capitalista, refletindo em cima do tratamento que os povos indígenas dão ao tema:

O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente condenados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa). (Krenak, 2019, p.40-41)

A trajetória da sociedade brasileira, profundamente influenciada pela colonização e pela prevalência de uma cultura hegemônica, tem sistematicamente obscurecido as perspectivas indígenas que viam a natureza como um elemento essencial da existência e de sua identidade, trocando-as por uma abordagem de exploração que resulta em tragédias como a do Rio Piracicaba. A formação econômica e social brasileira, desde o período colonial, foi construída sobre a premissa da natureza como fornecedora obrigatória de recursos, falhando no reconhecimento da vitalidade desse ser e ignorando seu valor intrínseco, como defendido por Krenak (Krenak, 2019).

Esse sistema de exploração da natureza, a fim de obter recursos naturais para produção, também se dá como fonte para exportações. O Brasil tem peso na exportação de commodities e, para obtê-las, a exploração dos recursos naturais é amplamente incentivada. Fernando Henrique Cardoso (1970), no texto “Dependência e desenvolvimento na América Latina” feito em colaboração com Enzo Faletto, utiliza a Teoria de Dependência para compreender a relação das economias centrais e periféricas. Ele argumenta que o subdesenvolvimento das economias periféricas – caso brasileiro – está intrinsecamente ligado a subordinação do país no sistema capitalista global, uma dependência política onde “os vínculos com o mercado internacional continuariam atuando, tanto pela necessidade de assegurar compradores para os produtos de exportação quanto pela necessidade de obter inversões do exterior” (Cardoso; Faletto, 1970, p. 18).

É possível perceber que o Brasil foi historicamente estruturado para atender às demandas internacionais, principalmente dos países centrais, e essa lógica moldou não só a economia, mas também relações sociais, políticas e ambientais do país. Desde o período colonial, o país foi inserido como economia primário-exportadora, voltada à extração de recursos naturais, uma estrutura de dependência que se mantém até hoje, já que segue subordinado às exigências do capital internacional (Cardoso; Faletto, 1970). Como consequência, a busca por competitividade no mercado global justifica a exploração da natureza no país, caso vivenciado pelo Rio Piracicaba.

Alberto Guerreiro Ramos (1966), um dos mais importantes sociólogos brasileiros, propôs em “A Redução Sociológica”, que o pensar sociológico do Brasil deve estar totalmente conectado com sua auto interpretação da realidade social brasileira como promoção de autonomia e emancipação, além de que isso seria uma ferramenta para transformação social, já que ao longo da história, o país importou modelos de desenvolvimento e teorias sociais sem a devida redução sociológica. Como resultado, políticas não se adequam à realidade local – à realidade brasileira e regional –, não são centrais ao projeto de nação e, consequentemente, falham em proteger o meio ambiente:

A redução sociológica é um método destinado a habilitar o estudioso a praticar a transposição de conhecimentos e de experiências de uma perspectiva para outra. O que a inspira é a consciência sistemática de que existe uma perspectiva brasileira. Toda cultura nacional é uma perspectiva particular. (Ramos, 1966, p. 42)

Assim, para Guerreiro Ramos, o mercado – embora necessário – também deveria ser limitado a fim de coexistir com outras estruturas sociais, valorizando as riquezas culturais e ambientais do país acima da mera acumulação econômica. A formação econômica brasileira, que foi e é marcada historicamente por um desenvolvimento que prioriza a todo custo seu crescimento, é criticada pelo autor, que propõe a substituição da racionalidade instrumental por uma racionalidade substantiva, fato que reflete sua visão nacionalista de desenvolvimento (Ramos, 1966).

Portanto, pode-se concluir que a mentalidade colonial e capitalista que construiu o Brasil transformou rios como o de Piracicaba em espaços destinados a dejetos e à exploração com objetivo de obter cada vez mais recursos para produção de bens e serviços. A Teoria da Dependência, de Fernando Henrique Cardoso, trata exatamente sobre essa busca incessante por lucro, influenciada pela competitividade global. O rio não deve ser visto apenas como um simples recurso para produção. Ao contrário do proposto por Ailton Krenak e do que é defendido pelos povos originários que vêem o rio como um ente vital, a exploração da natureza promovida pelo capitalismo condena o Rio Piracicaba a mero provedor e escoadouro.

Diante disso, a redução sociológica defendida por Alberto Guerreiro Ramos surge como um guia. Ele nos estimula a repensar a realidade brasileira, questionando modelos de desenvolvimento estrangeiros que não visam a proteção do meio ambiente do país e que negligenciam o valor essencial dos ecossistemas da natureza. A morte dos peixes no Rio Piracicaba, longe de ser um caso isolado, é a concretização da falta de uma racionalidade que priorize a vida e a natureza ao invés do lucro. Assim, o nome da cidade, que faz uma homenagem ao ciclo vital dos peixes, vira um triste paradoxo, expõe as consequências de um modelo econômico e social que insiste em ignorar o conhecimento ancestral e a realidade local para atender as necessidades dos seres humanos, impedindo a piracema de acontecer – de o peixe que ali parava, de realmente parar ou sequer viver. Por fim, o Rio Piracicaba, local onde o peixe encontrava refúgio para viver, passa a ser o lugar onde ele perece. 

 

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1966.

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