Reestruturação territorial metropolitana e os grandes projetos urbanos previstos para a cidade de Maricá/RJ

Boletim nº 83,  08 de novembro de 2024

Alice Matos de Pina

Doutora em Planejamento Urbano e Regional – (PPGPUR/UFRJ)

Professora do Instituto Federal Fluminense (IFF) – campus Maricá.

No ciclo recente do planejamento metropolitano do Rio de Janeiro (2005-2019), grandes projetos urbanos são previstos e/ou reeditados para Maricá, cidade litorânea situada na região do Leste Fluminense, no contexto do processo de reestruturação territorial e produtiva em curso. Este texto apresenta um recorte dos resultados da pesquisa desenvolvida no âmbito do doutorado realizado no IPPUR/UFRJ¹ (2018-2024), tendo em vista a inserção deste município no planejamento territorial e na dinâmica socioespacial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Interessa investigar os impactos do planejamento metropolitano em um território de regiões “periféricas” da RMRJ, que se desenvolveu sócio-espacialmente a partir de uma relação de heteronomia com o núcleo da metrópole, como é o caso do município de Maricá. O eixo leste de expansão litorânea da metrópole fluminense (figura 1) estava vinculado às diretrizes de ordenamento territorial que visavam fazer da região um balneário fluminense. A expansão urbana do vetor leste se acentuou ainda mais no ciclo recente: o município de Maricá foi o que mais cresceu no Estado do Rio de Janeiro nos últimos 12 anos, segundo o Censo realizado pelo IBGE em 2022, com um aumento populacional de 54%, que corresponde a um acréscimo de aproximadamente 70 mil pessoas, concentrando atualmente 197 mil habitantes. 

 

Figura 1 – Mapa dos vetores de expansão urbana da RMRJ em 1979, em destaque (amarelo) o bairro de São Francisco, em Niterói, “bairro modelo” que confirma a tendência de lançamento de grandes projetos imobiliários no eixo do Leste Metropolitano. (Fonte: FUNDREM, 1979b.)

Esse crescimento demográfico se deve a um conjunto de fatores, dentre os quais se destaca o contínuo processo de valorização fundiária e da constante renovação das estratégias de promoção imobiliária do urbanismo corporativo no núcleo metropolitano, que eleva o preço da terra e expulsa as camadas sociais menos favorecidas em um constante processo de periferização (não só para Maricá, mas para toda a franja periurbana da metrópole). Avalia-se que o crescimento populacional do município se deve também aos atrativos econômicos do processo de reestruturação territorial-produtiva e da opção por investir na expansão da indústria de extração de combustíveis fósseis (petróleo e gás natural), atribuindo ao leste metropolitano essa função na logística metropolitana. A “economia do petróleo” se tornou de fato central para a política do município: a partir do ano de 2023 Maricá assume a 1ª posição do ranking de cidades mais bem pagas em royalties do petróleo no país, recebendo neste ano aproximadamente R$ 2,4 bilhões, ou 13% do total de royalties distribuídos para os municípios no Brasil. Servindo como “laboratório” das políticas sociais implementadas pela gestão municipal do PT, à frente da prefeitura de Maricá desde 2008 – tais como o uso de moeda social digital de circulação municipal, transporte público com tarifa zero, dentre outros – a cidade é apresentada como uma vitrine do “desenvolvimento” urbano e econômico “sustentável”.

Este processo evidencia também a tendência à desconcentração metropolitana apontada por Santos (1993, p.101), dentre outros, em que, paralelamente à expansão da metropolização, ocorre “a chegada de novas aglomerações à categoria de cidades grandes e cidades intermediárias”. Maricá se insere, portanto, no caso segundo o qual “dispersão e concentração dão-se, uma vez mais, de modo dialético, complementar e contraditório”. 

A pesquisa de tese recém concluída analisa os dois ciclos do planejamento metropolitano do Rio de Janeiro a partir de sua relação com a problemática sócio-espacial e ambiental que se desenvolve neste território. O 1º ciclo da trajetória do planejamento da metrópole fluminense se inicia em 1975, com a criação da FUNDREM (Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro), autarquia estadual responsável pela gestão e planejamento metropolitano durante o período do regime empresarial-militar¹, até seu posterior esvaziamento programático e extinção, em 1990. O 2º ciclo se inicia em 2005, tomando como marco (normativo) a aprovação da Lei dos Consórcios (nº. 11.107), que permitiu o fortalecimento institucional dos arranjos intermunicipais no pacto federativo brasileiro e que coincide com o início de grandes obras de infraestrutura urbano-industrial de grande impacto na RMRJ, e que vão culminar com a retomada de instâncias de decisão metropolitana em 2015, após um hiato institucional de 25 anos, resultando na elaboração do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado (PEDUI) em 2018.

Teve-se como estudo de caso os grandes projetos urbanos propostos no ciclo recente do planejamento metropolitano para a cidade de Maricá, município que constitui um caso emblemático de implementação da agenda neoliberal na produção do espaço urbano e regional. A conjuntura atual da inserção do município na política nacional se caracteriza por uma ampla aliança de poder que, em parte, retoma o alinhamento político entre os diferentes entes da federação que havia impulsionado os grandes investimentos e projetos de reestruturação econômica e produtiva na escala metropolitana no início do 2º ciclo do planejamento metropolitano. Sem perder de vista os antecedentes históricos e sócio-espaciais que revelam uma profunda dependência da trajetória (Brenner, 2018) no planejamento urbano (apontando processos de continuidade e de rupturas/inovações), pretendemos analisar os sentidos e os impactos socioambientais de dois megaempreendimentos propostos pelo Estado em associação ao capital corporativo na cidade de Maricá: o complexo turístico-residencial “Maraey”, que prevê a privatização de uma Área de Preservação Ambiental de um ecossistema de restinga; e o Terminal de Ponta Negra, que pretende ser o maior terminal portuário 100% privado do país, previsto para ocupar a praia conhecida como “canto de Jaconé”, local que integra hoje o Geoparque Costões e Lagunas do Rio de Janeiro², considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

O município de Maricá teve um processo de ocupação urbana induzido a partir de diretrizes do ordenamento territorial estatal bem distintas daquelas que foram impostas para as periferias imediatas da capital. A “vocação” da região – que comporta um complexo lagunar formado por 6 lagoas, próximas a uma orla oceânica de 32km de praias – como destino para residências de veraneio e lazer, induziu um intenso e “desordenado” processo de loteamento e de desmembramento de áreas, que levou o município a declarar 70% de seu território como de “expansão urbana” na década de 1950, apesar de ainda apresentar características predominantemente rurais. 

A partir do convênio firmado com a FUNDREM foi elaborado em 1979 o primeiro plano diretor da cidade, que apresenta os 4 projetos urbanos prioritários, tendo em vista a inserção do município na dinâmica metropolitana (figura 2). Tais projetos visavam “dinamizar a economia” e consolidar a ocupação balneária da restinga, das praias e lagoas, uma vez que “o potencial turístico da região ainda não [havia sido] devidamente explorado” (FUNDREM, 1979, p.23). São eles: a extensão do aeródromo (inaugurado em 1972) através do aterro de parte da Lagoa de Maricá; a abertura da Estrada Litorânea Niterói – Rio das Ostras (RJ-102), através de 166 km de rodovia costeira (dos quais 34 estariam dentro do município de Maricá, cortando toda a restinga, entre as lagoas e o mar); a construção da ponte do Boqueirão (obra já em andamento na época), ligando o centro urbano à restinga; e, finalmente, o projeto da “Cidade de São Bento da Lagoa”, no terreno conhecido como Restinga de Maricá, projeto urbanização elaborado pela firma C&S Planejamento Urbano Ltda³., com consultoria do arquiteto e urbanista Lucio Costa.

Figura 2 – Organização territorial da FUNDREM para Maricá e os 4 projetos prioritários (Fonte: Plano Diretor de Maricá, FUNDREM, 1979a, mapa 10)

Todos os quatro projetos/intervenções apontados terão grande influência na dinâmica sócio-espacial de Maricá, tendo sido realizados e/ou permanentemente promovidos pelo poder público em associação ao capital imobiliário e corporativo. Destaca-se como objeto de pesquisa o projeto da “Cidade São Bento da Lagoa”, que prevê a urbanização da área de 900 ha de restinga e 8 km de praia da antiga Fazenda São Bento da Lagoa (maior gleba do município), que foi subdividida no início do século XX e vendida a particulares. 

O terreno foi adquirido em 1943 pelo empresário português José Thomé Feteira, que encomenda a Lucio Costa um plano de urbanização, assinando como consultor e signatário o projeto em contrato com o empresário. Trata-se de um empreendimento turístico-residencial destinado a 90 mil habitantes (5 vezes a população do município à época) onde seriam erguidas edificações de até 22 pavimentos seguindo um modelo de cidade modernista, no qual seria erguida uma verdadeira centralidade urbana no lugar dos cordões arenosos da restinga. O projeto propõe a construção de residências associadas a comércio e diversões; a salões de jogos e festas; e hotéis e seus espaços complementares – salão de convenções, restaurante, boutiques; centro administrativo com biblioteca e museu, complexo hospitalar, centro de esportes e um centro comercial com todos os serviços urbanos, ligado a uma estação rodoviária metropolitana por “galeria subterrânea com pequenas lojas em ambos os lados” (Módulo, 1975, p.66) (figura 3). 

Figura 3 – Anteprojeto e perspectiva da “Cidade de São Bento da Lagoa” ( Fonte: Revista Módulo, 1975, p.64-65)

Em verdade, a restinga era vista pelos autores do projeto como um lugar com ainda menos valor do que uma folha em branco: como “terras perdidas, pelo menos por nossa geração, seja para o lazer ou o residir condignos”, onde “observa-se de helicóptero, ou da leitura de cartas geográficas, ou de parcelamento da terra, a presença monótona de loteamentos mesquinhos, a maioria não habitados” (Módulo, 1975, p.66). As ocupações das populações tradicionais são descartadas, há apenas um espaço vazio a ser substituído por objetos arquitetônicos de alto padrão, voltados para atender aos interesses das classes mais favorecidas da capital fluminense. Tratava-se de erguer uma cidade “edificada a partir de núcleos de fim-de-semana e veraneio”, onde é “assegurada uma densidade tipicamente urbana e rentável” (p.70). 

Nem o projeto de urbanização, nem o Plano Diretor de Maricá referenciam o conflito socioambiental existente entre este tipo de ocupação intensiva e a prática da pesca artesanal realizada pelo povoado de pescadores artesanais conhecido como “Zacarias”, que habita esse território desde o século XVIII. A “aldeia dos irredutíveis”, como qualificaram os antropólogos Mello e Vogel (e assim também se reconhecem os seus habitantes) no célebre livro intitulado “Gente das Areias” (2004)4, é responsável por manter uma atividade centenária que concedeu ao território uma identidade intimamente vinculada à pesca lagunar, com histórias de abundância que atravessaram gerações. A partir da aquisição das terras pelo empresário5, a comunidade de pescadores foi expulsa de seu território original, às margens de um viveiro natural da lagoa (onde havia abertura de barras sazonais que permitiam a troca das águas da lagoa), anos antes do episódio trágico da “grande mortandade de peixes”, ocorrido em 1975, tendo seu modo de sobrevivência inviabilizado pelo empreendimento – além de sua cultura, história, patrimônio, etc.

O projeto de urbanização da Restinga enfrenta forte resistência da comunidade pesqueira e de associações de defesa do meio-ambiente, e não vai adiante. O movimento sociopolítico de defesa do patrimônio ambiental e cultural da Restinga encontra respaldo na gestão de Brizola (1983-1987) no governo do Estado que, em 1984, inclui o terreno em uma Área de Proteção Ambiental (APA) (Decreto Estadual nº. 7230). Transformada em uma “Unidade de Conservação de Uso Sustentável” sem um Conselho Gestor, a APA não obriga o Estado a efetivar a desapropriação do terreno e a indenização do proprietário, permanecendo como uma propriedade 100% privada. Um “nó jurídico” que mantém a comunidade de pescadores e o ecossistema de restinga em constante ameaça de remoção e urbanização, diante dos interesses de expansão da incorporação imobiliária.

A intenção do Estado em associação ao capital imobiliário de erguer na restinga de Maricá um empreendimento turístico-residencial é retomada no ciclo recente, após a compra do terreno em 20066 pelo grupo corporativo espanhol IDB Brasil, visando construir no terreno o resort denominado “Maraey” – nome apropriado da língua dos povos guaranis, da cosmologia e da lenda indígena “Terra Sem Mal”, Yvy Mara Ey. De forma similar ao projeto da década de 1970, o resort se destina às elites econômicas, comportando até 95 mil habitantes, e prevê um clube exclusivo e a privatização da APA, através do fechamento da orla das praias neste trecho. O empreendimento implica novamente na remoção da comunidade de pescadores de Zacarias e também da aldeia indígena “Mata Verde Bonita” (Tekoa Ka’Aguy Ovy Porã) da etnia Guarani Mbyá, que passa a habitar este território a partir de 2013. 

Reaparece, portanto, no início do 2º ciclo do planejamento metropolitano do Rio de Janeiro e de retomada de políticas de reestruturação produtivo-territorial, uma nova versão do projeto da “Cidade de São Bento da Lagoa”, agora com uma nova roupagem e marketing corporativo. Financiado novamente pelo capital imobiliário de origem portuguesa (uma holding internacional agora em associação ao espanhol), o projeto do resort é anunciado primeiro no Salón Inmolibiario de Madrid, em 2007. Considerado o maior complexo hoteleiro do estado do Rio de Janeiro, este pretende ocupar uma área de 844 hectares de um dos mais ameaçados ecossistemas do país, associado ao Bioma Mata Atlântica, impondo uma degradação sócio-ambiental irreversível sobre o território da restinga de Maricá e ferindo o direito à preservação dos modos de vida tradicionais das comunidades pesqueiras e indígenas.

Trata-se de criar um enclave privado da tipologia ‘condomínio de luxo’, promovendo a desarticulação do território na área da APA que corresponde à Restinga de Maricá. O projeto propõe desde moradias de luxo, a condomínios de casas unifamiliares, além das zonas destinadas à “oferta global de serviços turísticos”, oferecendo “instalações de luxo, de lazer e recreio (…) que incluem “Resort Praia” com recepção, hotel, piscina, zona desportiva; “Parque Aquático”, com acesso e bilheterias, estacionamento, zona infantil, piscinas de ondas, sanitários e balneários, “Resort Golfe” associado a complexo hoteleiro, restauração e casa clube, “Parque Empresarial” com campus empresarial […] (Valença, 2007, p.85).  

Visando viabilizar a construção do resort, ainda em 2007 é instituído o Plano de Manejo da APA de Maricá (Decreto nº 41.048) pela gestão de Sérgio Cabral no governo estadual (2007-2014), com um zoneamento dividido em 3 zonas em função dos níveis de degradação ambiental existentes. O decreto autoriza a urbanização de áreas apontadas como “mais degradadas” sem, no entanto, apresentar um critério objetivo para a classificação do “certo nível de degradação ambiental” utilizado para delimitar as áreas passíveis de urbanização. Por outro lado, o “plano” é elucidativo no que concerne às suas motivações: permitir a “implantação de projetos turístico-urbanísticos e condomínios na APA” (Art. 6º). São previstos, para cada uma das subzonas de ocupação controlada, percentuais de ocupação e gabaritos máximos que variam de 40% a 70% de ocupação, de 2 a 4 pavimentos, mais pilotis e cobertura.

Nota-se que o reconhecimento estatal do projeto de urbanização elaborado na década de 1970 justifica a implementação de um novo projeto, ajustado ao contexto do urbanismo corporativo (Fernandes, 2013). A construção do resort obteve a licença prévia concedida pelo INEA em 2015, sendo considerado “inevitável” pelo Instituto, mas as obras foram embargadas diversas vezes pela Justiça devido às irregularidades do processo. Uma análise georreferenciada do projeto (Souza, 2015, p.10) constatou que a área de ocupação é de 42% do terreno, muito maior do que a divulgada pela IDB Brasil, como sendo de 16% a área de intervenção e de 6,6% de ocupação predial (figura 4). 

Figura 4 – Plano de urbanização do Resort prevista para a Restinga de Maricá (Fonte: catálogo publicitário da IDB-Brasil, 2012)

A região da orla marítima do leste metropolitano teve, portanto, sua urbanização induzida para consolidar esse eixo de expansão de acordo com um padrão de ocupação voltado para “áreas nobres, ou seja, aquelas onde morar significa status” (FUNDREM, 1979b, p.13). A partir do 2º ciclo do planejamento da RMRJ, soma-se à “vocação” balneária da cidade uma nova função na logística metropolitana: a de integrar a rota da cadeia petroquímica, servindo como um “porto seguro” para atender a demanda de escoamento de gás natural e petróleo do pré-sal da Bacia de Santos, que seria refinado no COMPERJ (atual Complexo de Energias Boaventura) em Itaboraí. Com o objetivo de construir o maior terminal portuário 100% privado do país, a prefeitura de Maricá busca ativamente por investidores e contrata uma empresa para realizar o estudo de impacto ambiental do empreendimento, iniciando-se as tratativas corporativas, técnicas e burocráticas para a implantação do Terminal de Ponta Negra (TPN), também conhecido como “Porto do Pré-Sal” ou “Porto de Jaconé”. 

O terreno de 5,6 km² e 2 km da orla situado na praia do “canto de Jaconé” (onde havia um campo de golfe desativado do empresário Roberto Marinho), é vendido em 2011 para a empresa DTA Engenharia, que assume o projeto de construção do TPN, orçado inicialmente em cerca de R$ 5,4 bilhões de reais (valores de 2011). Na figura 5 (à esquerda) é possível constatar que o perímetro do terreno contorna um loteamento residencial, onde moram famílias originárias do local e pescadores artesanais da comunidade. No mapa da figura à direita nota-se que o agrupamento de casas foi eliminado do território para viabilizar a construção do TPN, literalmente apagado do mapa para dar lugar ao estaleiro voltado para a extração de petróleo e gás. De acordo com uma moradora, representantes da empresa contratada para construir o TPN foram a uma reunião com os moradores para “sugerir” que vendessem suas casas e comprassem outras “baratinho em São Gonçalo, (…) e que se não quisessem sair por bem, sairiam por mal”7

Figura 5 – Terreno e projeto preliminar do TPN apresentado pela DTA/S.A. (Fonte: Prefeitura de Maricá, 2011.)

Ademais, o sítio em questão possui notória importância científica e geológica, reconhecida desde a visita do naturalista e pesquisador inglês Charles Darwin à praia de Jaconé em 1832, quando identificou e descreveu o que encontrou naquele trecho da orla de Maricá: as beachrocks, ou arenitos de praia, formadas por depósitos de sedimentos que registram uma antiga linha de praia que existiu há 8 mil anos. O local se constitui, portanto, “como patrimônio geológico do tipo geomorfológico, sedimentar, paleoambiental, além de arqueológico e contextualizado na história da ciência. Tem importância internacional e valor científico, cultural, didático e ecológico” (Mansur, Ramos, et al., 2011, p.290). 

Sucessivas alterações legislativas vêm ocorrendo para viabilizar a construção do TPN, como a aprovação da Lei nº 2483/2013 que altera a redação do Plano Diretor da Cidade e cria uma Área de Especial Interesse Urbanístico e Econômico, voltada para atividades de Logística, Portuária e Industrial em Jaconé. Em janeiro de 2015 foi publicado um Decreto (nº 45.128) pelo governador Pezão, instituindo o TPN como “indispensável ao desenvolvimento socioeconômico” do município e suas obras como de “utilidade pública” (Art. 1º). No ano seguinte, o INEA, mais uma vez, aprova o Relatório de Impacto Ambiental do empreendimento, mesmo ano em que o MPRJ foi movido por uma Ação Civil Pública, elaborando um relatório no qual aponta a inconstitucionalidade do processo institucional de viabilização do TPN, além de vícios (nulidade) e grave ilegalidade no licenciamento ambiental. Apesar disso, em março deste ano, vinte dias depois de tomar posse como Ministro do STF, Flávio Dino (PSB) rejeitou o recurso extraordinário do MPF, mantendo a decisão que autorizava a continuidade das obras do TPN em Maricá.

Vê-se que a atuação do Estado, alinhada aos interesses empresariais do capital financeiro em manter um regime de acumulação que requer uma reestruturação territorial-produtiva, finda por favorecer a produção de um urbanismo corporativo, ameaçando os direitos das comunidades tradicionais que habitam esses territórios e também a biodiversidade e a preservação ambiental de um local considerado patrimônio da humanidade. A preservação é essencial para a mitigação das mudanças climáticas, agravadas pela própria lógica de produção do espaço urbano-regional que privilegia o modelo corporativo-industrial e transforma lugares em ativos financeiros. Na contramão das evidências ambientais e socioespaciais apresentadas – e em meio a denúncias e apurações de casos de abuso de poder político, corrupção e de desrespeito do direito à participação cidadã na elaboração da política urbana –, o discurso institucional de defesa da instalação do TPN e da urbanização da restinga com a construção do resort Maraey se legitima sobre os preceitos do fadado “desenvolvimento econômico”, reproduzindo a cartilha neoliberal com suas práticas predatórias, a qual promete “geração de empregos”, mas entrega expropriação sociocultural, precariedade nas relações de trabalho e degradação ambiental. 

A ameaça de remoção violenta das famílias que habitam aquele território é uma marca da heteronomia do processo de reestruturação territorial-produtiva e do ajuste espacial fomentado pelo Estado para atender às demandas do capital financeiro e corporativo, que se repete tanto na APA da restinga de Maricá com o projeto do resort, como na praia de Jaconé com o projeto do TPN. A pesquisa demonstrou que não há reconhecimento por parte do Estado das autonomias locais e regionais requeridas por territorialidades não-hegemônicas. Ambos empreendimentos enfrentam resistência organizada das comunidades tradicionais, aldeia indígena, moradores, pesquisadores, comunidade científica, etc. que, entre idas e vindas dessa arena de lutas em torno da produção do espaço urbano, permanece em disputa. Trata-se de planejar o conflito através da construção do projeto da autonomia – lutar coletivamente para construir as condições de um planejamento territorial que faça frente à lógica imposta pela cartilha do capitalismo neoliberal.

 

NOTAS

1 O termo ditadura empresarial-militar faz referência à compreensão de diversos historiadores e pesquisadores de que foi a aliança de interesses entre o empresariado nacional e internacional, os militares e o apoio financeiro e logístico do capital internacional, principalmente dos Estados Unidos, que garantiram a instauração e permanência do regime durante 21 anos (1964-1985). O termo destaca a presença e influência do empresariado nesse período e evidencia o alinhamento de um projeto político e econômico intrinsecamente ligado aos interesses do capital nacional e internacional.

2 Geoparques são áreas geográficas onde paisagens de relevância internacional são geridas com um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável.

3  O projeto é elaborado pela firma de Maria Elisa Costa e Eduardo Sobral, com consultoria do arquiteto Lucio Costa, pai e sogro dos autores do projeto.

4 O livro apresenta um trabalho poético e etnográfico que retrata a história e a luta do povoado pesqueiro de Zacarias e do meio ambiente formado por sistema lagunar e restinga em Maricá, entre os anos de 1975 e 1995.

5 O empresário era dono da Companhia Vidreira do Brasil (COVIBRA), que atuou associada a empresa norte-americana Westinghouse Eletric Corporation na extração de areia monazítica da restinga para exportação, da qual era retirado o elemento radioativo Tório, utilizado como catalisador de reações químicas industriais e como combustível em algumas usinas nucleares (Coyunji, 2011, p.8)

6 Após o longo conflito socioambiental em torno da urbanização da restinga, o empresário português Lúcio Thomé Feteira vende o terreno para a empresa “Terra Ouro-Terrenos e Investimentos Ltda.” em 1999, administrada pelo José Cintra, português que fez fortuna como especulador fundiário nos anos 1970, que o revende em 2006 para o conglomerado luso-espanhol ICB Brasil.

7 Fala retirada do documentário realizado pelo Ministério Público do Estado do RJ, “Beachrocks em Chamas”, no qual trata da atuação do MPRJ no caso referente ao licenciamento ambiental para implementação do terminal portuário privado na Praia de Jaconé/Maricá. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ehX9NLvn6Mk. Acesso em: 25 maio 2024. 

 

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