Coletânea “Urbanizações brasileiras 1800-1850” traz análises inéditas sobre as cidades na primeira metade do século XIX
Boletim nº 76, 05 de março de 2023
Coletânea “Urbanizações brasileiras 1800-1850” traz análises inéditas sobre as cidades na primeira metade do século XIX
A professora Fania Fridman, do IPPUR, em parceria com o professor Carlos Henrique C. Ferreira, estão lançando a coletânea intitulada “Urbanizações brasileiras. 1800-1850”. A publicação é resultado do esforço de pesquisa de dezenas de pesquisadores de diferentes formações disciplinares, atuantes em universidades e instituições públicas nacionais e salienta a complexidade da formação do país durante esse período de profundas mudanças.
A partir de dados da bibliografia, de documentos oficiais e de representações iconográficas e cartográficas, as redes urbanas foram mapeadas e analisadas, sob a ótica da urbanização como um processo inerente à concentração de população, à organização interna e à repartição no território dos centros de atividades econômicas, políticas, administrativas e culturais. Assim, o livro oferece um painel de diversas perspectivas e revela um vasto campo de investigações sobre a história urbana brasileira, que podem servir à revisão de hipóteses legitimadas nas Ciências Sociais e Humanas.
A publicação está disponível para download gratuito nos sites do IPPUR e da editora Letra Capital, nos seguintes endereços:
IPPUR – https://ippur.ufrj.br/publicacoesippur/
Editora Letra Capital – https://www.letracapital.com.br/produto/urbanizacoes-brasileiras-1800-1850/
Confira abaixo o texto da quarta capa do livro, elaborado pelo professor Rogério Haesbaert, que endossa a importância desta publicação para o campo do planejamento urbano, e também a apresentação da obra, escrita pelos autores.
Fania Fridman, a partir de seu profundo conhecimento da história urbana brasileira, aqui com a colaboração de Carlos Henrique C. Ferreira, nos brinda neste livro com o resultado de uma pesquisa de fôlego, de caráter transdisciplinar, envolvendo 30 investigadores de todo o país. Realiza-se assim, através desta coletânea, uma análise inédita da urbanização na primeira metade do século XIX, período chave na formação socioespacial brasileira, síntese de agudas tensões entre a herança colonial, as pretensões imperiais e a transição regencial.
Enfocando diferentes províncias, do Grão-Pará ao Rio Grande do Sul e aquelas “que não foram”, este trabalho manifesta toda a diversidade e complexidade dessa urbanização no jogo entre centralismo (autoritário, mas muito desigual) e regionalização (muitas vezes transfigurada em regionalismos autonomistas). A transformação espacial se dá especialmente através da criação de comarcas, vilas e cidades que, sob uma economia de profundas bases rurais-extrativistas, mas também em efervescência comercial, direcionava a dinâmica de ocupação e fixação no território. Trata-se de um retrato detalhado e empiricamente rigoroso de um processo que, como indicado na apresentação, é identificado, desde suas origens, como uma “urbanização no plural”, impregnada nos/dos distintos quadros regionais dentro da vasta realidade geográfica brasileira. Estes textos, sem dúvida, proporcionam ao leitor uma consciência ainda mais aguda do caráter contraditório, moderno-colonial, extrativista, escravista e patriarcal que ainda hoje tanto marca a urbanização e, por extensão, as diferentes faces da (des)territorialização brasileira.
Rogério Haesbaert
Prof. Titular do PosGeo – Universidade Federal Fluminense
O projeto “Urbanizações brasileiras no século XIX” teve seu início em janeiro de 2020 reunindo 12 docentes. Em pouco tempo já agregava 30 pesquisadores de diferentes formações disciplinares pertencentes a universidades e instituições públicas nacionais.¹ Se, a princípio, o século XIX era nosso marco temporal, com os debates no grupo delimitamos duas fases para a análise do objeto, direcionando a primeira para os dois quartéis iniciais do Oitocentos. Para a proposta de recuperação do quadro urbano das províncias brasileiras no passado, decidimos pela elaboração de um amplo repertório sobre as aglomerações populacionais como as cidades, vilas, freguesias, povoados, lugares, arraiais e aldeias. O levantamento contaria ainda com as referências geográficas das localidades acrescidas às estruturas (aos “fixos”) – portos, registros aduaneiros, escolas e liceus, postos dos correios, hospitais, presídios, colônias, aldeamentos, fortificações e caminhos.
Partimos de uma fonte comum, o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil, de J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe.² Aos poucos, a este inventário foram incorporadas outras informações, como dados demográficos, sociais e econômicos e as funções desempenhadas pelos diversos assentamentos. Essa compilação, recolhida na bibliografia, em documentos oficiais e nas representações iconográficas e cartográficas, permitiram a análise e o mapeamento conjectural das redes urbanas provinciais e interprovinciais. Com tais elementos, buscamos estabelecer as bases da urbanização como um processo inerente à concentração de população, à organização interna e à repartição no território dos centros de atividades econômicas, políticas, administrativas e culturais.
É consensual que desde os finais do século XV a urbanização da futura América Latina se fez pela invasão e conquista desencadeadas por Portugal e Espanha. Na colônia portuguesa no Brasil, após a implantação de postos avançados de trocas comerciais e patrulhamento na costa atlântica no Quinhentos, a metrópole estabeleceu assentamentos possuidores de instituições de controle para assegurar a posse. Essa lógica se perpetuou ao longo dos séculos. Para o Império decretado em 1822, foram exigidos a consolidação da unidade territorial e o enraizamento da nação “para dentro”. O domínio em cada província do novo país contou com a fundação e/ou extinção de cidades, vilas e freguesias de acordo com a orientação política governamental e as demandas das elites locais/regionais, responsáveis pelo comando e gestão de suas áreas.
Durante a primeira metade do século XIX, o país testemunhou variadas experiências nas províncias, cujos alicerces, incluindo os geográficos, moldaram suas características urbanas e regionais. A economia desempenhou importante papel na urbanização, com destaque para as atividades mineradoras, da produção açucareira e do comércio nas áreas consolidadas, além da cultura do café, mate, pecuária e da manufatureira encontradas em áreas dinamizadoras após a Abertura dos Portos. Tais práticas impactaram na configuração espacial, em diversos casos imprimindo uma regionalização estendida ao congregar relações interprovinciais e contribuindo para a redefinição da hierarquia entre os centros urbanos.
Os caminhos fluviais e terrestres (muitos dos quais legados indígenas) e a proximidade da costa também foram determinantes para a escolha das localidades e a ampliação da(s) rede(s) urbana(s). Mas não só. As configurações territoriais assumidas pela urbanização que espelharam processos com variados ritmos, repercutiram os eventos políticos e as reformas jurídico-administrativas resultantes da centralização e/ou da (pretensa) autonomização das províncias brasileiras. Foram tempos de reestruturação das instituições do ordenamento espacial e de provimento de melhorias para os núcleos, sobretudo para as então polarizadas cidades-capitais e vilas-moradas dos mandantes. No início da década de 1830 em diante, se percebe um “despertar” urbano no qual, como herança colonial, as circunscrições sobrepunham suas teias político-administrativa, judiciária e eclesiástica. Do mesmo modo, esse “despertar” se desdobrou dos enfrentamentos cruciais na formação do Império e da nacionalidade – as insurreições, quase todas de base urbana, como também as ameaças potenciais representadas pelos quilombos e a presença dos indígenas desprovidos de suas terras. As lutas e resistências das populações e as espacialidades por elas produzidas influenciaram o processo de urbanização.
As diferentes miradas dos autores sobre um tema comum – a urbanização – destacam as características peculiares de cada província e as similaridades entre elas, o que nos permite mencionar o processo de constituição do urbano no plural. A presente coletânea intitulada “Urbanizações brasileiras. 1800-1850” salienta a complexidade da formação do país durante esse período de profundas mudanças. São capítulos referidos a cada província,³ acompanhados por dois pequenos capítulos sobre movimentos separatistas e programas de estruturação territorial que não chegaram a se concretizar.
Reforçando a relevância desse esforço de pesquisa, o livro evidencia a riqueza das contribuições ao oferecer um painel de diversas perspectivas e revelar o vasto campo de investigações sobre a história urbana brasileira que podem servir à revisão de algumas hipóteses legitimadas nas Ciências Sociais e Humanas.
Para finalizar, queremos expressar nosso reconhecimento a Tiago Cargnin Gonçalves pelo imprescindível suporte oferecido às cartógrafas Graziela Maziero Pinheiro Bini e Heloísa de Campos Lalane na elaboração dos mapas. Agradecemos aos estudantes Bruna Alves, Cecília Medeiros do Livramento Barreto, Fernando Nicholas dos Santos Dias, Guilherme Faria Moraes e Rafael Alfradique Garcia que, incansáveis, participaram nos âmbitos mais variados da pesquisa. Somos gratos ainda ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelos recursos recebidos para a edição deste livro.
Rio de Janeiro, outubro de 2023.
Fania Fridman
Carlos Henrique C. Ferreira
Notas:
1 Os estudos começaram no final de fevereiro, e no dia 11 de março a Organização Mundial de Saúde decretou a pandemia da Covid-19. Durante a quarentena, a continuidade dos trabalhos se tornou um desafio para os participantes do projeto. Entre tantas dificuldades vivenciadas naquele período estava a restrição de acesso às fontes documentais com o fechamento das bibliotecas e arquivos. Mesmo com os embaraços impostos pela pandemia, nossos encontros virtuais favoreceram a integração dos pesquisadores de todas as regiões do país.
2 Publicado em 1845 e reeditado pela Coleção Mineiriana em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2014.
3 Por motivos alheios à nossa vontade, lamentamos que não pudemos contar com os estudos desenvolvidos para os casos de Piauí e da Bahia.