Aula Inaugural IPPUR 2020: A desconstrução da democracia social e da cidadania urbana no Brasil
Boletim nº 34 – 03 de setembro de 2020
Por Maria Fernanda Fontenele Azevedo, Laura Fernandes Oliveira Meres, Yeda Assunção e Ebraim¹
Depoimentos de Liara Lima, Leandro Tavares e Matheus Mendonça¹
A Aula Inaugural do IPPUR/UFRJ, ocorrida no dia 24 de agosto de 2020, teve como tema a “A desconstrução da democracia social e da cidadania urbana no Brasil”, ministrada pela Professora e Pesquisadora Sonia Fleury. Expoente da Reforma Sanitária no Brasil, que resultou na criação do Sistema Único de Saúde – SUS, a pesquisadora abordou a questão das políticas sociais no contexto democrático contemporâneo. Fleury apresentou o surgimento do estado de bem-estar social, que deu início à implementação de políticas sociais, e o seu desmoronamento, a partir da década de 1970, principalmente nos países periféricos.
A proteção social nos estados se consolida em torno de três modalidades: o assistencialismo, a previdência e a seguridade social, sendo a última comum ao Estado de bem-estar social. A primeira delas é o assistencialismo, baseado em valores liberais, cujos indivíduos devem buscar sua ascensão no mercado, ao passo que aqueles que fracassarem serão cobertos por transferências governamentais. Esse modelo geraria uma cidadania invertida, pois o cidadão deve mostrar sua incapacidade de sobrevivência para garantir o auxílio. O segundo modelo é o de previdência, no qual os benefícios são meritocráticos, acarretando uma cidadania regulada pela ocupação no mercado de trabalho. A última modalidade é a da seguridade, oferecida pelo estado de bem-estar social, cuja cidadania é universal, financiada pelo trabalho, mas também através de subsídios governamentais.
Fleury apresenta a questão do patriarcalismo frequente nos programas sociais, que vendo sendo combatida com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e também com o aumento da expectativa de vida, a partir do tríplice: estado, mercado e cidadania. Contudo, esse triângulo vem sendo modificado com a globalização, tendo em vista o surgimento de poderes supranacionais (as empresas transnacionais que se tornam mais fortes que o próprio Estado) e mercados internacionalizados (desterritorialização da produção). A única variável que se mantém é a cidadania, segundo a pesquisadora.
O Estado deixa, então, de ser um ente arrecadador para se tornar devedor. A grande questão torna-se o fato de como financiar políticas públicas já que o Estado não consegue arrecadar o suficiente e o pouco que arrecada é destinado ao pagamento de juros da dívida. Desse modo, gera-se uma desconfiança com a democratização e a consequente participação popular no processo decisório. A partir disso, o mercado financeiro ganha cada vez mais força, tornando o capital o grande gerenciador da questão social.
Para a Sonia Fleury, a individualização dos riscos torna as pessoas ricas ainda mais ricas, o que foi ilustrado durante a atual pandemia, em que houve maior concentração de grupos ativos na bolsa de valores. Além disso, segundo a sanitarista, as novas tecnologias devem ser adicionadas a tal questão pois alteram a forma produtiva, acarretando em uma precarização do trabalho e em políticas de austeridades, através de contenção dos gastos públicos e redução da proteção social. Após o projeto social-democrata ruir, a cidadania universalizada vem sendo cada vez mais fragilizada e ameaçada, dando lugar ao processo de instauração de uma democracia oligárquica.
Ao longo de sua fala, Sônia Fleury resgata a Constituição Federal de 1988 e seus devidos artigos que resguardam a cidadania e a questão social. De acordo com Fleury, as demandas sociais deveriam ser equacionadas por parte da sociedade com o propósito de encontrar soluções para problemas cruciais no atendimento da população em relação à questão sanitária, de saúde, de mobilidade social, em busca de estratégia para o enfrentamento desses desafios, abarcada na tecnologia e a ciência, trazendo para a cena política de novos sujeitos.
O enfrentamento da questão social não deve ser apenas uma proposta de combate à pobreza, mas deve promover a construção da cidadania. A partir dos anos 90 houve a implantação dos planos universais com arquitetura democrática-participativa, inovadora, promovendo o acesso da população a um de benefícios antes reservados às elites: do educação pública, regras para o salário mínimo, saúde universalizada, cotas raciais etc, de modo a propiciar à população um conjunto de direitos. Por outro lado, o período também foi marcado pela política de austeridade, aspecto recrudescido a partir de 2016, o que promoveu um retrocesso nos direitos adquiridos: redução de direitos trabalhistas, desmantelamento das forças sindicais, precarização do trabalho e a Emenda Constitucional 95, o “teto dos gastos”, entre outras medidas, que expressam o fortalecimento da extrema-direita no país.
Por tais aspectos, a construção da cidadania no processo democrático tem sido ameaçada por um populismo autoritário e assistencialista que aparece em resposta à pandemia covid-19. A discussão do estabelecimento de uma renda mínima universal, hoje está distante da realidade brasileira.
Em relação à moradia e a mobilidade social, ambos estão ligados ao contágio de pessoas que são as mais afetadas, pela falta de políticas públicas eficazes, sendo este nicho, os que mais morrem por covid-19; englobando a população de risco. As desigualdades sociais sempre existiram mas apenas quando ameaçam a coesão social, os fundamentos da ordem social, é que são vistas como questões sociais. A despeito desses aspectos, é necessário reconhecer também o crescimento das lutas em torno do comum, o que tem mobilizado e propiciado a formação de lideranças forjadas nessas lutas.
Em linhas gerais, devemos lutar por políticas públicas eficazes, contra o esvaziamento de direitos e da perpetuação da cidadania invertida, por uma reforma urbana-sanitária e um sistema de políticas justas e universais.
DEPOIMENTOS
A brilhante contextualização histórica e teórica da pesquisadora Fleury permitiu compreender de forma crítica o contexto em que estamos vivendo hoje. Foi, assim, possível visualizar a relevância das questões urbanas e como as mesmas passaram a ser questões sociais com demandas inadiáveis tendo em vista o cenário de grande desordem política, social e econômica oriunda de transtornos sanitários.
Para nós, futuros gestores públicos, o entendimento de questões sociais vinculadas às questões urbanas é de suma importância para que possamos compreender, estudar essas problemáticas e, consequentemente, elaborar soluções e intervenções políticas. Além disso, a palestra foi um convite para que tenhamos propostas, que possam ir além do auxílio emergencial, promovendo, por exemplo, uma renda universal de cidadania, uma reforma urbana e o fortalecimento dos sistemas universais de proteção social.
Para ter acesso à aula na íntegra, clique aqui.
¹Graduandos do Curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ).