Participação do IPPUR no V ENEPCP e a perspectiva de gênero no campo de Públicas
Boletim nº 73, 30 de setembro de 2023
Por Glaucy Hellen Herdy Ferreira Gomes
Mestranda IPPUR | Pesquisadora NUGEPP-IPPUR
Em setembro de 2023, aconteceu na capital mineira, Belo Horizonte, o quinto Encontro Nacional de Ensino e Pesquisa no Campo de Públicas (V ENEPCP), que por si só já se tratava de uma ocorrência especial: esta seria a primeira realização presencial do evento, após passados 3 anos da impossibilidade de sua organização física devido à pandemia da COVID-19. Além disso, outro ponto de destaque para esse evento foi participação em grande número da comunidade IPPUR, em seus variados segmentos, tais como graduação, pós-graduação e grupos de pesquisa. Foram mais de 20 integrantes do Instituto promovendo debates no Encontro, o que demonstra a ampliação da inserção do campo de públicas no planejamento urbano e regional, e vice-versa.
Mas, neste texto, pretendo dar destaque especial aos espaços dedicados às questões de gênero e a sua relação com o campo de públicas. Para tratar dessa discussão no Encontro, foram dedicadas duas sessões temáticas: i) a ST3 – Diversidade antissexista, antirracista, anticapacitista, antipreconceitos e respeito a todas as orientações sexuais, identidades de gênero e perfis populacionais, que promoveu a discussão em torno de 5 trabalhos e foi realizada de forma virtual; e ii) a ST4 – Gênero, Políticas Públicas e Divisão Sexual do Trabalho, que debateu 14 trabalhos e foi realizada presencialmente. Além disso, foi promovida uma mesa redonda destinada à discussão das políticas de cuidado, a “MR – Políticas públicas de cuidado: um compromisso teórico e político do Campo de Públicas?”, bem como o lançamento do livro de Letícia Godinho e Renata Seidl intitulado “Mulheres Negras e Gestoras: Porque sim!”. A variedade de formatos, de temáticas e de abordagens, demonstra a consolidação dessa frente de pesquisa, bem como a ampla agenda de estudos que está colocada para o campo de públicas, sobretudo quando articuladas às perspectivas dos estudos territoriais e urbanos.
Apesar da existência das duas sessões temáticas específicas para tratar do debate de gênero no campo de públicas, foi possível notar a inclusão da transversal do gênero em trabalhos de outras sessões, como foi o caso do trabalho “Sistema prisional, direitos humanos e gênero no poder legislativo: uma análise da produção legislativa federal (2015-2022)” apresentado na ST2 – Criminalidade, Segurança Pública e Direitos Humanos; dos trabalhos “O gasto na educação brasileira e as desigualdades de gênero, raça/etnia: (im)pacto na aplicação das contas públicas” e “As políticas públicas de educação, gênero e diversidade sexual: avanços e retrocessos”, apresentados na ST 7 – Estado e Sociedade Civil: políticas públicas, múltiplas desigualdades e construção de futuros com prospectiva estratégica; e do artigo “Perspectivas de estudos de gênero, cadeia produtiva da pesca artesanal e justiça social: orientações para a promoção da equidade no Pea-pescarte” apresentado na ST 16 – Avaliação de Políticas Públicas. Além disso, outros 10 trabalhos de fora das ST3 e ST4 carregavam em seu título a menção às mulheres. Essa pluralidade de temáticas no campo de públicas, com enfoque na abordagem de gênero ou na perspectiva das mulheres, aponta para o crescimento da agenda de pesquisa que incorpore o gênero de fato como uma categoria de análise – e não como mais um componente a ser adicionado – transversalizando e interseccionalizando as propostas de políticas.
A mesa redonda dedicada a tratar das políticas de cuidado, contou com a apresentação da pesquisa de Maria de Fatima Lage Guerra do DIEESE, apontando caminhos e desafios para se quantificar e contabilizar os trabalhos de cuidado e doméstico, bem como de índices, indicadores e variáveis em comum, vislumbrando a criação de políticas públicas. Por um outro lado, Luana Simões Pinheiro do IPEA e atuante na Secretaria Nacional de Cuidados e Família do MDS, apresentou o trabalho que está sendo desenvolvido no âmbito do Grupo de Trabalho Interministerial dedicado à construção de uma política nacional de cuidados, que está em sua fase de desenvolvimento do marco conceitual e busca atuar, em conjunto com o maior número de ministérios possível, uma definição de cuidado como direito social nos termos do Art. 6º da Constituição Federal.
Falando especificamente das sessões temáticas, tratarei da ST4, a qual tive a oportunidade de participar das discussões e promover debates com apresentação da minha pesquisa. De primeira impressão geral, posso dizer que foram muito ricas as proposições e pesquisas colocadas para debate nesta sessão. A proposta geral da sessão era articular teorias, metodologias e experiências concretas de políticas públicas, articuladas com o debate de gênero, cujo enfoque especial poderia ser dado na divisão sexual do trabalho, nas políticas de cuidado, ou mesmo conexões entre diferentes áreas das políticas de gênero, como por exemplo, enfrentamento à violência, saúde reprodutiva, assistência social, educação, e etc.
Dividida em 4 blocos de apresentações, que ocorreram ao longo das tardes de dois dias do evento, a ST4 conseguiu oportunizar debates com perspectiva de gênero sobre temáticas do trabalho, do enfrentamento à violência, das políticas assistenciais e da participação política. Embora todos os trabalhos tenham suscitado ricas discussões e apresentado uma ampla gama de temas, objetos de análise, metodologias e abordagens, acho interessante destacar aqueles que buscaram dar enfoque aos temas ligados às políticas públicas atravessando o campo do planejamento urbano e regional, transversalizados pela perspectiva de gênero. Desses, foram apresentados 5 trabalhos, sendo 3 deles de discentes do IPPUR, 1 de uma discente do PPGDT/UFRRJ e 1 de uma discente da FGV/EASP.
O primeiro trabalho, da doutoranda Paula Guedes, buscou tratar “Os processos de precarização do trabalho doméstico remunerado e sua territorialização no espaço urbano”, apresentando um mapa detalhado acerca das dinâmicas urbanas geradas pela desigualdade de renda no Rio de Janeiro, a partir da particularidade do trabalho doméstico. O segundo trabalho apresentado foi o meu, intitulado “Territorialização de políticas públicas com perspectiva de gênero: análise do Programa Casa da Mulher Brasileira”, cujo objetivo se deu em analisar documentos de um programa federal de enfrentamento à violência de gênero, cuja base territorial se dá na consolidação de equipamentos públicos intersetoriais e integrados à uma rede de outros serviços e políticas, buscando compreender seus critérios para definição de localização no espaço urbano. Já o terceiro trabalho, elaborado por Amanda Silveira, discente egressa da especialização, apresentou “O impacto da mobilidade urbana no acesso e permanência na Universidade: estudo sob a perspectiva de gênero”, fruto de uma pesquisa qualitativa junto ao corpo discente da UFRJ na Ilha do Fundão, compreendendo com a perspectiva de gênero como as disparidades na mobilidade afetam de forma diferente a qualidade de vida das(os) discentes da Universidade. O quarto trabalho, elaborado pela mestranda Samara Ruzza, buscou analisar a “Violência feminicida no Rio de Janeiro: a realidade interseccional da mulher carioca”, onde a divisão das áreas municipais de planejamento, sobretudo as áreas da segurança pública, torna-se ferramentas fundamentais para compreender interseccionalmente os dados de feminicídio na cidade do Rio de Janeiro. Por fim, o quinto trabalho, desenvolvido pela doutoranda Juliana Rocha Miranda, cujo título é “Mariana é minha filha”: categorização, proximidade e distância territorial na implementação de políticas sensíveis a gênero”, apresentou um ensaio de análise das distinções de atuação das burocratas de nível de rua demonstrando que a sua atuação depende da região/territorialidade em que estão posicionadas, revelando que o estigma de territórios e corpos influencia diretamente na forma como uma política pública pode ser implementada.
Destes 5 trabalhos apresentados na temática do planejamento urbano com perspectiva de gênero, pude destacar que a ideia de territorialização (de políticas, de dados, de informações…) perpassou de alguma forma a sua abordagem, o que pode estar revelando a abertura ou a ampliação de uma agenda de pesquisa. Nesse sentido, cabe levantar algumas perguntas que precisamos colocar na mesa para debate: O que compreendemos por territorialização? Onde e como as políticas urbanas encontram-se permeáveis à inclusão da perspectiva de gênero? Qual conceito/abordagem de território trabalhamos ao tratar de uma categoria de análise que é relacional (como o caso do gênero)? E como a territorialização de políticas públicas se encontra sensível à uma perspectiva interseccional e integrada de gênero?
O que fica a mostra, a princípio, é que a territorialização de políticas públicas, assim como transversalização de gênero, tanto não são temas consolidados no campo de públicas, quanto requerem o rompimento com a tradicional lógica setorial de gestão pública brasileira, colocando desafios no âmbito da articulação teórica entre gênero e planejamento urbano, bem como na aplicação prática de implementação e de funcionamento intersetorial e integrado das políticas. Além disso, o uso do gênero com perspectiva interseccional têm se mostrado um imperativo, uma necessidade incontornável, dada a urgência de reconhecer e dar respostas para as profundas desigualdades étnico-raciais do Brasil. Ficam colocados como desafios para as formações em Planejamento Urbano e em Gestão Pública, a sensibilidade requerida para tratar da temática de gênero considerando-a não somente como categoria de análise ou variável operacionalizável, mas também toda sua carga epistemológica e política, construída (e disputada) historicamente pelos movimentos feministas e de mulheres.
Em conclusão, a participação no encontro foi bastante frutífera para promoção de encontros, trocas de conhecimento e vislumbrar as iniciativas que estão sendo desenvolvidas em outros espaços e núcleos. Como pesquisadora feminista que busca articular gênero ao planejamento urbano, fico satisfeita com a difusão e a diversidade de pesquisas com uma abordagem feminista de gênero que estão sendo desenvolvidas pelo Brasil afora, confirmando a ebulição dessas discussões que vem se avolumando desde a segunda metade da década passada, e sem sinais de arrefecimento ou estabilização. É uma lástima que os colegas pesquisadores, professores e gestores homens, em sua maioria, não participem dessas discussões, talvez por ainda acreditarem que falar de gênero é sinônimo de falar de mulheres, como se fosse um assunto que diz respeito apenas a nós. Para construir as cidades porvir, baseadas na igualdade, é necessário que todos(as) participem ativamente dessa transformação, e que começa hoje.
Desejo que, para os próximos Encontros da ANEPCP, possamos encontrar esse cenário ainda mais diversos e amplo, mas também mais bem estruturado academicamente, com a presença de mais grupos de pesquisa, mais projetos e financiamentos, mais produções teóricas e metodológicas, e mais mesas redondas e sessões temáticas sendo transversalizadas pela perspectiva de gênero. O futuro é feminista!