A origem do 08 de março: sem flores ou estereótipos de gênero

Boletim nº 11 – 04 de março de 2020

 

O Dia Internacional da Mulher, celebrado em 08 de março remonta à luta das mulheres trabalhadoras no início do século XX. Comunemente associada a um incêndio ocorrido em uma fábrica em Nova York, em 1911, a escolha da data, 08 de março, vincula-se em realidade à greve de trabalhadoras russas no âmbito do processo revolucionário russo de 1917. Diversas greves e manifestações ocorridas nas primeiras décadas do século XX contribuem para o fortalecimento e conscientização de um outro papel da mulher na sociedade.

De acordo com Eva Blay (2001), apesar da efervescência das lutas da classe trabalhadora nos países industrializados, por melhores condições de trabalho, maiores salários, redução das longas jornadas e proibição do trabalho infantil, a pauta das mulheres por igualdades salariais, de votos, liberdade sexual, entre outras reivindicações, eram desconsideradas sob a justificativa de que tais pautas enfraqueceriam a “luta geral”. Em contraposição ao silenciamento das mulheres e almejando uma “nova consciência do papel da mulher como trabalhadora e cidadã” nomes como Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Clara Lemlich, Emma Goldman, Simone Weil e outras militantes dedicariam suas vidas às lutas e são precursoras do que viria a ser o movimento feminista.

A escolha do 8 de março 

A primeira proposta do Dia Internacional da Mulher foi defendida por Clara Zetkin (1857-1933). Zetkin era alemã, membro do Partido Comunista Alemão, militante do movimento operário e dedicada à conscientização da mulher. A data foi proposta em ocasião do II Congresso Internacional de Mulheres, ocorrido em Copenhagen, em 1910, ainda sem data precisa, e um ano antes do famigerado incêndio. Ainda que naquele momento a pauta não tenha entrado entre os temas centrais do movimento operário, os acontecimentos posteriores revelam a proeminência das trabalhadoras e, sobretudo, dos movimentos de esquerda para o estabelecimento da data.

No dia 08 de março de 1917, trabalhadoras russas do setor de tecelagem e mulheres de soldados entraram em greve e pediram apoio de metalúrgicos, tomando as ruas de Petrogado (São Petersburgo) e convocando o operariado russo contra a monarquia e pelo fim da participação da Rússia na I Guerra Mundial. Essa seria, segundo Trotski, uma greve espontânea e não organizada, e marcou o primeiro momento da Revolução de Outubro, com destaque para as revolucionárias Aleksandra Kollontai, Nadiéjda Krúpskaia, Inessa Armand, Anna Kalmánovitch, Maria Pokróvskaia, Olga Chapír e Elena Kuvchínskaia (Blay, 1911; Brasil de Fato, 2019).

Na década de 60, o 8 de Março foi sendo constantemente escolhido como o dia comemorativo da mulher e se consagrou nas décadas seguintes. Na Conferência Internacional das Mulheres Comunistas de 1921, o dia 08 de março foi aceito como data oficial em referência aos acontecimentos de 1917, data reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1975.

A luta das mulheres trabalhadoras, das revolucionárias russas, dos partidos comunistas e dos sindicatos tem papel fundamental para a origem do Dia Internacional da Mulher, revelando o conteúdo de classe e a luta contra o patriarcado que marca a data. De acordo com Diana Assunção, historiadora e integrante do coletivo feminista Pão e Rosa, há um processo de invisibilização do papel da luta socialista das mulheres, em um processo de esvaziamento do conteúdo político da data, aspecto que precisa ser resgatado (Brasil de Fato, 2019).

 

Operárias em luta 

Nos Estados Unidos as condições de trabalho das mulheres na emergente economia industrial no início do século XX levou à formação da Women’s Trade Union League, em 1907, pela ação de sufragistas e profissionais liberais. O objetivo era organizar as trabalhadoras assalariadas na luta por igualdade de direitos. Com a instabilidade econômica e sucessivas crises (1907 e 1909), os salárioseram baixos e a mão de obra abundante, sobretudo em decorrência da população imigrante europeia, cuja característica era aexperiência na militância política.

“Para desmobilizar o apelo das organizações e controlar a permanência dos trabalhadores/as, muitas fábricas trancavam as portas dos estabelecimentos durante o expediente, cobriam os relógios e controlavam a ida aos banheiros. Mas as difíceis condições de vida e os baixíssimos salários eram forte incentivo para a presença de operários e operárias nas manifestações em locais fechados ou na rua” (Blay, 2001, p. 3).

Em 1908, no último domingo de fevereiro, mulheres socialistas dos Estados Unidos fizeram uma manifestação que chamaram de Dia da Mulher, cuja pauta viria a ser a reivindicação pelo direito ao voto e melhores condições de trabalho.

No ano seguinte ocorre em Nova York uma das maiores greves da indústria têxtil, entre setembro de 1909 e fevereiro de 1910. Na ocasião, as trabalhadoras da empresa Triangle Shirtwaist Company tiveramgrande protagonismo por terem sido as primeiras a pararem, o que deflagrou um movimento de adesão a uma greve geral, conhecida como “o levante das 30 mil” (Lima, Blog da Boitempo, 2016). Conforme Daniela Lima, a partir de González (2010) naquele período, no setor têxtil, a maior parte da mão de obra eram mulheres. Entre as reivindicações da greve estavam salários mais altos, melhorias nas condições de trabalho, abolição do sistema de subcontratações, jornada de trabalho de 52 horas semanais e reconhecimento dos direitos sindicais. Tratou-se da primeira grande greve de mulheres no país, quando nem mesmo o direito ao voto era assegurado. Apesar de 300 patrões terem feito acordo com os trabalhadores, 13 empresas resistiram em aderir às demandas, incluindo a Triangle, que via em suas operárias um grande problema para a classe empresarial.

Em meio a greves, manifestações, repressões e negociações, as condições das mulheres trabalhadoras pouco se alterava, principalmente nas fábricas de pequeno e médio porte, o que reacendeu os movimentos reivindicatórios. A reação dos empresários era a mesma – portas fechadas ao longo do expediente, relógios cobertos, controle total, salários extremamente baixos e longas jornadas (Blay, 2001). Foi nesse cenário de repressão, opressão e precariedade nas condições de trabalho que ocorreu, em 25 de março de 1911, o incêndio na Triangle Shirtwaist Company. A empresa empregava 600 trabalhadoras, a maioria imigrantes judias e italianas de 13 a 23 anos. Foram 146 pessoas mortas, 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus.

De acordo com Daniela Lima (Blog Boitempo, 2016), o julgamento dos proprietários das empresas acabou por inocentá-los em um processo cujo júri foi composto unicamente por homens, visto que mulheres não podiam ser juradas em Nova York. A alegação era de que não se poderia provar que eles tivessem ordenado trancar as portas. O testemunho de sobreviventes sobre as práticas dos patrões foi desconsiderado. Ficava evidente que o aparato jurídico estaria todo em prol dos patrões, inclusive culpabilizando os trabalhadores pelas suas mortes.

Uma das versões do incêndio narra que as trabalhadoras da Triangle haviam ocupado a empresa e, como retaliação, os patrões teriam trancado a saída e ateado fogo na fábrica. Entretanto, testemunhos de sobreviventes negam a existência de greve naquele momento.

Todo o processo de reivindicações, manifestações e greves que marcam a luta das trabalhadoras e a indignação causada pelo incêndio ocorrido na Triangle fortaleceram a formação da International Ladies’ Garment Workers’ Union – ILGWU e o reconhecimento dos sindicatos. A ILGWU, de conotação socialista e um dos braços mais ‘radicais’ do American Federation of Labour (AFL), se tornou o maior e mais forte dos Estados Unidos naquele momento (Blay, 2001). Muitas outras manifestações ocorreram em várias partes do Mundo: Nova Iorque, Berlim, Viena (1911), São Petersburgo (1913).

A escolha da data, portanto, não ocorreu em conseqüência do incêndio na Triangle, embora este fato tenha se somado à sucessão de enormes problemas das trabalhadoras em seus locais de trabalho, na vida sindical e nas perseguições decorrentes de justas reivindicações. Verifica-se ainda o caráter multiescalar das lutas, a medida que se expande o capitalismo sob hegemonia do capital industrial. Outro aspecto é revelador: expande-se o capitalismo, expandem-se as lutas de classes e, junto com elas, evidenciam-se seus rebatimentos desiguais na própria classe trabalhadora: mulheres, crianças e migrantes se apresentavam como grupos vulneráveis nas pujantes fábricas.

Por outro lado, Blay (2001) ressalta que a resistência em relação às pautas de mulheres e homens jovens, que ultrapassavam as questões trabalhistas e o sistema político,  e envolviam temas relativos aos corpos, à sexualidade, à reprodução humana, relações afetivas entre homens e mulheres, aborto entre outros, os tornaram tabus, em prol de políticas de massa, o que retardou a inserção desses temas na luta das classes trabalhadoras, temas retomados apenas a partir dos anos 60 pelo movimento feminista.

 

Contexto brasileiro

No Brasil, Berta Lutz, grande líder e sufragista brasileira se destaca na luta pelo direito ao voto feminino. Já no início dos anos 20, Berta tem apoio de um grupo de mulheres burguesas para pressionar pelo voto feminino junto a deputados federais e senadores, que se dirigem a Getúlio Vargas. O voto feminino foi concedido em 1933 e garantido na Constituição de 1934. No entanto, as mulheres brasileiras só viriam a votar pela primeira vez com o fim da ditadura varguista, em 1945.

Por parte da classe trabalhadora brasileira, que no setor têxtil era constituído majoritariamente por mulheres e crianças, as denúncias envolviam menores salários que os homens nos mesmos postos de trabalho, jornadas exaustivas que chegavam a 18 horas entre fábrica a atividade de costura em casa, exploração sexual falta de higiene nas fábricas, falta de pagamento de horas extras marcavam a condição das mulheres trabalhadoras. Além de serem tratadas como seres inferiores e desqualificados (Blay, 2001). Tais reclamações e denúncias eram veiculadas por jornais operários, espacialmente os anarquistas. O papel da luta das mulheres anarquistas merece destaque: não lutavam apenas contra a opressão de classe, mas também pelas liberdades sexuais, o divórcio e contra a opressão de gênero e viam no sistema partidário a reprodução das relações de poder, social sexualmente hierarquizadas.

As lutas por condições igualitárias nas relações trabalhistas, em favor da legalização do aborto e por direitos reprodutivos ainda se fazem necessárias nas primeiras décadas do século XXI, e se somam às lutas contra o feminicídio, contra a cultura do estupro, contra a objetificação da mulher, em suas interfaces com as questões de classe, raça e etnia.  São por todas essas questões que é necessário pautar o viés de luta que marca o Dia 8 de março.

Referências

Blay, Eva Alterman (2001). 8 de março: Conquistas e controvérsias. Rev. Estud. Fem. vol.9 no.2 Florianópolis. Disponível emhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200016

Brasil de Fato (2019). Março das Mulheres: Conheça a verdadeira história do 8 de Março, por Lu Sudré. Disponível emhttps://www.brasildefato.com.br/2019/03/08/marco-das-mulheres-or-a-verdadeira-historia-do-8-de-marco

Lima, Daniela. (2016). Às que vieram antes de nós: histórias do Dia Internacional da Mulher. Disponível emhttps://blogdaboitempo.com.br/2016/03/07/as-que-vieram-antes-de-nos-historias-do-dia-internacional-das-mulheres/