A quem interessa a Reforma da Previdência?

Boletim nº 1 – 11 de setembro de 2019

 

O IPPUR e o CAGESP/UFRJ realizaram, no dia 2 de setembro, o evento “Reforma da Previdência e o Projeto Future-se: desafios impostos à Gestão Pública”. O debate contou com a participação de Sara Granemann, da Escola de Serviço Social. De acordo com a professora, “se admitirmos a Previdência Pública como solução para a classe trabalhadora, a previdência privada não cresce. E é assim que temos uma retórica mistificadora”.

A professora Deborah Werner (GPDES/IPPUR) participou do evento e fez um registro da apresentação da Sara Granemman. O Boletim IPPUR divulga essa síntese com o objetivo de oferecer aos alunos subsídios para o debate sobre a Reforma da Previdência.

 

Por Deborah Werner¹

 

A Previdência Social deve ser compreendida no âmbito do sistema de Seguridade Social e resulta das lutas da classe trabalhadora dos anos de 1985 e 1988, incluída como política social de Estado pela Constituição Federal de 1988 (CF 88). Desde então, a política social de Seguridade Social sofre continuada desmonte pelas sucessivas Emendas Constitucionais (EC).

Com a CF de 1988, a Seguridade Social e em especial a Previdência Social seriam tratadas, pela primeira vez, de maneira pública e universal. Apesar de restrita e empobrecida – se a compararmos à noção de seguridade social que vigorou nos países do Welfare State – é considerada uma das maiores vitórias das lutas e das forças organizadas ao fim da ditadura militar.

A noção de Seguridade Social diz respeito ao conjunto das seguintes politicas sociais: i) de assistência social; ii) de previdência social e iii) e de saúde pública. Trata-se de uma política social unitária, com um único orçamento e que se divide nessas três políticas. Tal conformação, inclusive orçamentária, é muito importante e sua compreensão permite superar falsos argumentos e alguns mitos. O principal deles é o do Déficit da Previdência Social. Vejamos:

A Previdência Social, pública e estatal, foi construída, para os servidores públicos, no pós 1993, de forma contributiva. No Regime Geral de Previdência Social (RGPS) contribuem o Estado, trabalhadores e trabalhadoras e empregadores. Além das contribuições de trabalhadoras/es e empregadores, abastecem o Fundo de Seguridade Social, outras fontes de financiamento via tributos, dentre os quais: Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). A Previdência Social, como política pública, de intervenção do Estado, é uma política social que se divide em dois pilares: o Regime Geral de Previdência Social, cuja instituição executora é o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS); e o Regime Próprio da Previdência Social (RPPS). Considerando tal estrutura, a Previdência Social é superavitária.

De onde vem o tal “déficit”?

Os déficits calculados e alardeados por sucessivos governos e imprensa consideram as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores frente aos montantes a serem pagos, ignorando as demais fontes que compõem o orçamento da Seguridade Social. Ao não levarem em conta todas as contribuições, chega-se ao déficit: “a tortura dos números pode fazer os números dizerem qualquer coisa”, alerta Granemann.

Para exemplificar, a Professora menciona a pesquisa de Denise Gentil, docente do Instituto de Economia da UFRJ. No ano de 2017, o Orçamento da Seguridade Social, executado, foi de cerca de R$700 bilhões. Por outro lado, no mesmo ano, deixou-se de alocar no Fundo da Seguridade Social aproximadamente outros R$700 bilhões, porque foram retirados da Seguridade pela via da Desvinculação das Receitas da União (DRU), pela não execução/cobrança da Dívida Ativa Previdenciária, pela Renúncia Fiscal e pela Sonegação, este último um evidente crime contra a previdência social em particular e à Seguridade Social em geral. A pergunta que temos de fazer é a seguinte:

“Como se retira tanto dinheiro de uma política social que está em déficit?”

Como alerta Granemann, “o trabalhador, caso deixe de contribuir para a previdência pública, perde o direito de segurado, mas os grandes capitais, podem negociar e pagar as primeiras parcelas, interromper o pagamento e mesmo assim podem acessar os recursos e empréstimos do Estado. A DRU e a Dívida Ativa da União, são mecanismos legítimos, porém perversos que determinam o empobrecimento da seguridade e promovem o discurso de déficit na previdência.

Além da DRU e da Dívida Ativa da União, importa enfatizar os dois traços acima mencionados como recursos previdenciários: as isenções fiscais relacionadas ao recolhimento da parcela do empregador ao Fundo Previdenciário, sob a justificativa de geração de emprego, e a sonegação. Granemann chama a atenção para os numerosos casos em que após 20, 30 anos de emprego, o trabalhador, ao requerer os recursos previdenciários supostamente recolhidos, descobre que o empregador não o fez: “resta neste caso o desespero das trabalhadoras e dos trabalhadores” como um quase nada a se fazer.

“Essas quatro formas de se retirar recursos da seguridade social quase todos os anos correspondem ao Orçamento da Seguridade Social que é executado. Se o Estado brasileiro tomasse isso a sério, o orçamento desse ano, que é de R$1,2 trilhão, seria, no mínimo, superior em 50%. E os hospitais, a assistência e a previdência seriam muito mais alargadas e generosas para a classe trabalhadora brasileira”, argumenta Granemann.

Com relação aos regimes próprios, tratam-se de 2.130 regimes, compostos pelos servidores federais, estaduais e municipais. Em pesquisa em andamento, a Professora identificou que considerando apenas os regimes próprios de estados, distrito federal e União, os mesmos acumulam cerca de R$1,7 trilhão!

Além de política social, a Previdência Pública sofre ainda outros efeitos nefastos que a torna ainda mais necessária em país de elevada desigualdade social. No mês de julho o RGPS pagou cerca de 35 milhões de benefícios, dos quais em torno de 29 milhões foram para a previdência e os demais para os direito Assistênciais. A Professora alerta que em mais de 70% dos municípios, essa massa de recursos corresponde ao maior valor recebido pelos municípios, superior ao transferido pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Além de ser uma política social é uma política econômica de demanda efetiva, favorável ao mercado interno. Evidencia-se, portanto, a importância da Previdência Social para a coesão territorial decorrente do Pacto Federativo brasileiro. Uma reforma que desconsidere esse aspecto fragiliza o próprio pacto e a sobrevivência econômica desses entes.

A quem serve então uma Reforma da Previdência que se justifica pelo déficit?

“Esses recursos aparecem como déficit, pois se não for a retórica do déficit, não há a menor possibilidade de a “previdência privada” continuar a crescer no Brasil e substituir a Previdência Privada”. Apesar de ser chamada de “Previdência”, trata-se na verdade de um investimento financeiro de risco. Diante dos elevados riscos para a classe trabalhadora, nomeados pelo que eles realmente são, papéis financeiros, provavelmente teriam baixa adesão e elevada oposição da parte dos trabalhadores, nos esclarece Granemann.
Há dois tipos de “Previdência” Complementar: a aberta e a fechada. A primeira está relacionada à vendida pelos bancos, seguradoras e a segunda são as formadas por fundos de pensão pelas categoria.

Desde 1988, foram feitas seis reformas que desconfiguraram da Previdência Pública, além das duas tentativas recentes. “Cada vez que há uma reforma na previdência pública, tem uma subida absurda da previdência privada aberta, a vendida pelos bancos”: em 2003, a complementar fechada tinha R$240 bilhões; a oferecida pelos bancos e corretoras tinha R$43 bilhões, e ambas somavam R$283 bilhões. Em 2010, a fechada passa para R$539 bilhões; e a aberta alcança R223 bilhões, totalizando R$762 bilhões, um crescimento de 169% no montante total da complementar. Já em 2018, a fechada alcança 904 bilhões; a aberta chega a R$836 bilhões. Somadas temos, R$1,740 trilhão, ou seja, 127% entre 2010 e 2018. Esse total corresponde a 25% do PIB de 2018.

Se somarmos os recursos previdenciários, público e privado, temos, portanto, quase um PIB brasileiro!

“Por que então esse alarde que a previdência vai quebrar, que os jovens não terão previdência, que os mais velhos vivem em situação privilegiada, que a agricultura familiar é privilegiada porque tem um salário mínimo, que as mulheres domésticas não devem ter previdência, etc…por que essa retórica?” Essa retórica é mistificadora, porque se admitirmos a Previdência Pública como a solução para a classe trabalhadora, para os eventos de pobreza, de acidente e de envelhecimento, a previdência privada não cresce. Na nona economia do mundo, na vigência de uma grave crise econômica dos capitais, é preciso buscar na educação pública (com o Future-se, por exemplo), na destruição da Previdência Pública, os novos espaços para que o capital transforme o nosso direito social em mercadorias. Esta é uma das saídas dos grandes capitais na tentativa de reverter a queda das suas taxas de lucro”. Para a classe trabalhadora, da qual fazemos parte, nossa saída é outra: às ruas e em defesa das políticas sociais.”

Eis a tarefa que nos cabe em tempos tão duros: lutar em defesa dos direitos da classe trabalhadora e impedir que aqui se (re)instale as mais injustas condições de vida do planeta.

 

¹Docente do Curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (IPPUR/UFRJ)