As desigualdades persistentes
Boletim nº 31 – 30 de julho de 2020
Por Henri Acselrad¹
Reprodução: A Terra é Redonda
Tudo indica que estamos observando os efeitos de uma proteção desigual duradoura, disposta no tempo, continuada e capaz de marcar drasticamente a história social dos corpos de negros e pobres.
Os primeiros dados sobre os impactos da desigualdade social e racial na pandemia vieram do exterior. O Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA divulgou, em abril de 2020, que 33% das pessoas hospitalizadas com COVID-19 eram afro-americanos, enquanto apenas 13% da população dos EUA o são[i]. Na França, nos meses de auge da epidemia, as mortes de imigrantes se elevaram numa proporção duas vezes maior do que a dos não-imigrantes em comparação com os mesmos meses do ano anterior[ii]. Negros e minorias étnicas, na Inglaterra, perfizeram, segundo relatório do mês de maio de 2020, um número de mortes hospitalares per capita quase três vezes maior que o da maioria branca[iii].
No Brasil, os dados sobre a cor dos atingidos pelo COVID custaram a ser registrados. A Coalizão Negra por Direitos, associações científicas e defensorias públicas insistiram, junto ao Estado, para que tais registros fossem feitos. No mês de junho, os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde passaram a divulgar dados sobre a cor de mortos e doentes com Covid-19 como já o faziam algumas unidades da federação. As hipóteses começaram a se confirmar. Em meados de junho, o IBGE anunciou que a taxa de letalidade se mostrava maior entre os negros atingidos por covid-19 do que entre os brancos; que desigualdades de renda e cor fazem com que pessoas negras e grupos de baixa renda sejam atingidos pela epidemia em percentuais maiores do que sua participação no conjunto da população[iv].
Entre os fatores de risco, assinalam-se as condições de moradia densas e insalubres, localizadas em áreas com má qualidade do ar, com baixo acesso a serviços de saúde adequados e desprovidas de saneamento básico; a menor possibilidade de autoproteção pelo isolamento, a dificuldade de acesso ao auxílio emergencial e a testes. Some-se a isto o peso da subnotificação dos casos e da própria informação sobre cor e renda, assim como a ação do racismo estrutural que faz com pessoas negras sejam estigmatizadas ao usar máscaras[v]. Por este conjunto de fatores, os grupos atingidos mais que proporcionalmente pelo vírus são ditos mais vulneráveis ao dano epidêmico. No entanto, sob a designação de vulnerável há que se reconhecer realidades múltiplas que mereceriam ser melhor discutidas. Tentaremos a seguir fazer deste termo um exame mais detalhado.
Enquanto a noção de risco designa a probabilidade de ocorrência de um dano, a noção de vulnerabilidade designa a suscetibilidade de certos grupos serem afetados por esse dano, considerando-se um conjunto de condições intercorrentes – faixa etária, cor, gênero, nível de renda etc.[vi] A caracterização de um grupo como vulnerável decorre do cruzamento dos dados sobre a distribuição social do dano com as ditas condições intercorrentes, fazendo com que se possa perceber a existência de grupos afetados mais que proporcionalmente, ou seja, em proporção maior do que o de sua participação no conjunto da população.
O Estado, em sua configuração corrente de máquina pública, costuma se interessar por identificar, medir e localizar os sujeitos ditos “vulneráveis”. É o caso dos mapeamentos de certas situações sociais configuradas em um ponto do tempo – pessoas abaixo da linha de pobreza e número de crianças em situação de rua, por exemplo. Em geral, trata-se de pesquisas que estimam o estoque de indivíduos em situação de carência. As autoridades, quando dispostas a adotar políticas sociais destinadas a estes grupos, se propõem a suprir tais carências, provendo um suplemento daquilo que faltaria para levar o “vulnerável” a uma condição tida por aceitável de existência. É como se a condição de vulnerabilidade fosse circunstancial, pois ao se produzir o retrato de uma situação, deixa-se de atentar para os processos de vulnerabilização que lançam estes grupos na condição de vulnerabilidade. Consegue-se assim apenas minorar certas situações de precariedade, sem que as estruturas que as produzem sejam tocadas. É sabido, porém, que a situação de vulnerabilidade decorre de mecanismos que retiram – ou deixam de fornecer – as condições que permitiriam a certos grupos se defenderem apropriadamente dos riscos. Exemplo disto é o veto do atual governo brasileiro ao artigo da Lei 14.021/20 (DOU, 8/7/2020) sobre medidas de proteção e prevenção de contágio por covid-19 nos territórios indígenas que obrigava o governo a fornecer acesso a água potável, materiais de higiene e limpeza, instalação de internet e cestas básicas para as aldeias. Levando-se em consideração mecanismos deste tipo, consegue-se apontar para o que é devido aos sujeitos como um direito e para o conjunto de decisões políticas de natureza distributiva que se fazem necessárias[vii].
A suscetibilidade a ser atingido por danos de ordem ambiental, por exemplo, tais como inundações, escorregamentos, vendavais ou rompimento de barragens, tem a ver com a posição relativa dos grupos sociais no espaço, a saber, com a localização preponderante da moradia dos grupos vulnerabilizados em terrenos precarizados, desvalorizados e situados nas proximidades de fontes de risco. Os que vivem em tais situações o fazem, por certo, porque não lhes foram destinados ou lhes foram retirados os meios que lhes permitiriam habitar localidades afastadas de fontes de risco, dotadas de infraestrutura e de serviços de saúde. Ao se identificar os processos de vulnerabilização, se poderia explicitar, por certo, os mecanismos que geram as condições de vulnerabilidade. Assim fazendo, seria possível vislumbrar, por via de políticas públicas, a interrupção da ação destes mecanismos, evitando que grupos mais despossuídos sejam lançados na condição de vulnerabilidade. Tais riscos poderiam ser enfrentados por políticas habitacionais, urbanísticas, ambientais, sanitárias e de renda que combatessem a segregação socioespacial e permitissem a todos manter uma distância protetora com relação às fontes de risco. Seria assim evitada a criação de situações ditas de desigualdade ambiental, maciçamente constatável em nosso país – situações em que há proximidade ou co-localização de fontes de risco e espaços de moradia de população negra e de menor renda. No caso da presente pandemia, por exemplo, a moradia em áreas precarizadas e a falta de acesso de tais grupos aos serviços de saúde contrasta radicalmente com a mobilidade das famílias de alta renda que puderam se utilizar de UTIs aéreas para se afastar de locais com rede hospitalar insuficiente em direção a São Paulo e Brasília para obter tratamento adequado[viii].
Há processos de vulnerabilização, por sua vez, que, por sua longa duração, lançam as pessoas em situações socioespaciais de existência que terminam por inscrever a vulnerabilidade em seus próprios corpos. No caso da presente pandemia, além da vulnerabilidade decorrente da condição socioespacial de vida dos grupos expostos de forma mais que proporcional à ação do vírus, há indícios de que a própria imunidade destes grupos estaria se mostrando minorada. Eles estariam não só mais expostos ao risco de contágio, como mais suscetíveis de serem contaminados de forma mais grave e letal. No caso de agravos de ordem viral como o da presente pandemia, as trajetórias duradouras de vida em espaços sem saneamento, atendimento de saúde, moradia segura etc. teriam tornado os corpos da população negra e de baixa renda mais suscetíveis à contaminação e à letalidade.
Não importa, portanto, apenas o instante em que alguém se encontra em situação de vulnerabilidade. A variável tempo pesa. E ela conta não só por haver um processo de vulnerabilização, como também pela duração da posição dos sujeitos em situações de precariedade e, consequentemente, do stress que tendem a sofrer em suas capacidades de defesa, inclusive, como parece indicar o caso presente, imunitárias. Pesquisadores do campo da genômica social e da psiconeuroimunologia têm trabalhado sobre o modo como o stress social, o racismo, discriminações e condições precárias de vida podem levar pessoas ao estado de crescente risco de doenças. [ix].
Se assim for, a maior suscetibilidade da população negra à pandemia estaria projetando no tempo aquilo que já se verificara empiricamente no âmbito espacial. Até aqui, havia-se comprovado o papel da variável “proximidade” entre os sujeitos tornados vulneráveis e as fontes de risco. Estes sujeitos tendem, de fato, a se mover num circuito espacial de precariedade – terrenos contaminados, proximidades de um oleoduto, linha de transmissão ou valão. Robert Bullard, um dos pioneiros dos estudos sobre as desigualdades ambientais, lembra-nos que a ausência de garantia dos direitos leva a um impacto cumulativo de carências e co-morbidades sobre a população negra e de baixa renda[x]. Mas no caso da presente pandemia, parece valer, em acréscimo, o peso do tempo, ou seja, da duração da experiência em uma condição social de vulnerabilidade como fator de stress das capacidades imunitárias frente aos agravos de ordem sanitária. Tudo indica que estamos observando os efeitos de uma proteção desigual duradoura, disposta no tempo, continuada e capaz de marcar drasticamente a história social dos corpos de negros e pobres. A segregação socioespacial que afeta esses grupos resulta, portanto, também em tempo de vida social que lhes é subtraído.
¹Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ).
Notas
[i] “CDC Data Finds African Americans — 13% Of U.S. Population — Account For 33% of COVID-19 Hospitalizations”, Allison Aubrey e Joe Neel, 8/4/2020, https://laist.com/2020/04/08/cdc-african-americans-covid-19-hospital-data.php
[ii] “Covid: une hausse des décès deux fois plus forte chez les personnes nées à l’étranger”, Héléna Berkaoui, 7/7/2020, https://www.mediapart.fr/journal/france/070720/covid-une-hausse-des-deces-deux-fois-plus-forte-chez-les-personnes-nees-l-etranger?onglet=full
[iii] Lucinda Platt e Ross Warwic, Are some ethnic groups more vulnerable to COVID-19 than others?, The Institute for Fiscal Studies, Nuffield Foundation Londres, May 2020. https://www.ifs.org.uk/inequality/wp-content/uploads/2020/04/Are-some-ethnic-groups-more-vulnerable-to-COVID-19-than-others-IFS-Briefing-Note.pdf, acesso em 27/7/2020.
[iv] A Pnad Covid-19 do IBGE mostrou que os brasileiros mais afetados pela doença são os pretos, pardos, pobres e sem estudo. Entre os 4,2 milhões de brasileiros que apresentaram sintomas da doença em maio de 2020, 70% deles eram de cor preta ou parda, enquanto esses grupos representam 54,8 % da população. https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/ Em julho de 2020, o demógrafo Eustáquio Diniz estimou que os indígenas tinham 98% mais chance de vir a óbito do que as pessoas da cor branca, enquanto as pessoas pardas, 72% de maior chance e as negras, 46%. “Diário da Covid-19: cem dias de dor e sofrimento por trás dos números”, https://projetocolabora.com.br/ods3/cem-dias-de-dor-e-sofrimento-por-tras-dos-numeros/. Estimativas semelhantes foram publicadas na revista Lancet: “Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study” (Baqui P., Bica I., Marra V., Ercole A, van der Schaar M.) Lancet Glob Health. 2020; (publicado online em 2 de julho de 2020) https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0
[v] “Homens negros relatam casos de racismo ao utilizar máscaras na rua”, Fabiana Batista,
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/08/homens-negros-relatam-casos-de-racismo-por-utilizar-mascaras-na-rua.htm, acesso em 27/07/2020
[vi] Ayres, J.R.C.M. et al. Aids, vulnerabilidade e prevenção. Rio de Janeiro, ABIA/IMS-UERJ, II Seminário Saúde Reprodutiva em Tempos de Aids,1997.
[vii] A vulnerabilidade é uma dinâmica social e não uma condição passiva ou inevitável aguardando um impacto. As pessoas mais vulneráveis são aquelas cujas capacidades e liberdades de ação são limitadas ou suprimidas por múltiplos formas: os cronicamente desempregados, os desfavorecidos e os excluídos das decisões ou benefícios em razão de preconceitos de classe, raça, gênero ou religião. cf. Kenneth Hewitt, Preventable disasters: Addressing social vulnerability, institutional risk, and civil ethics, Geographische Rundschau International Edition Vol. 3, No. 1/2007, p. 49.
[viii] “Com estado em colapso, milionários de MT com covid-19 recorrem a jatinhos para buscar tratamento em SP”, Vinicius Lemos, BBC News Brasil, São Paulo, in https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/07/17; “Com rede privada sem vagas em Belém e Manaus, mais ricos fogem de UTI aérea”, Aiuri Rebello, UOL, São Paulo, 06/05/2020, https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/06/coronavirus-rede-privada-sem-vaga-manaus-belem-mais-ricos-fuga-uti-aerea-sp.htm
[ix] April Thames, “The Chronic Stress of Being Black in the U.S. Makes People More Vulnerable to COVID-19 and Other Diseases”, The Conversation, 9/6/2020.
[x] “The ´Father of Environmental Justice` on Why He Isn’t Surprised by COVID-19 Health Disparities, an interview with Robert Bullard”, Texas Montlhy.174/2020, https://www.texasmonthly.com/news/father-environmental-justice-coronavirus/