Atrito de inteligências urbanas no urbanismo periférico orientado por dados
Boletim nº 75, 30 de novembro de 2023
Tomás Donadio, Lalita Kraus, Aldenilson Santos e Ramon Carnaval
Desde os anos 1990, consolidaram-se modelos de gestão pública que promovem estratégias de mensuração e monitoramento da vida urbana. Atualmente, estes modelos aliam-se ao acelerado desenvolvimento tecnológico e à sua aclamada função de tornar as cidades mais sustentáveis, humanas e inteligentes. O discurso de cidades inteligentes tornou-se um leitmotif capaz de definir agendas, políticas e projetos urbano-tecnológicos, expandindo infraestruturas computacionais embutidas, distribuídas e integradas no ambiente urbano, como câmaras de vigilância e sensores, somando-se aos dispositivos utilizados individualmente, como redes sociais e aplicações móveis. Entretanto, o urbanismo orientado por dados materializa-se tanto em agendas de cidades inteligentes quanto em iniciativas subalternas, acarretando atritos entre inteligências urbanas divergentes. No Rio de Janeiro, a investigação de ações governamentais e cívicas orientadas por dados contribui para a compreensão de como as lutas pelo direito à cidade avançam de forma agonizante na periferia global. Através de um estudo urbano comparativo, esta investigação explora duas abordagens contrastantes em arranjos sociotécnicos: uma promovida pelo poder público através de uma agenda hegemónica de suposta modernização urbana; outra que emerge nas periferias pela agência da sociedade civil, subversiva e contra-hegemónica.
Nas últimas três décadas, o Rio acompanhou um movimento global em que as cidades tornaram-se máquinas de crescimento, acumulação e concentração de capital e os governos locais experienciaram a virada empreendedora. Após décadas de governança empreendedora, branding urbano, privatizações e incorporação de tecnologia nos sistemas urbanos sob gestão de partidos de centro-direita ou conservadores, em 2008, Eduardo Paes foi eleito prefeito do Rio. Sob sua gestão, supostamente racional, inovadora e baseada em evidências, a cidade construiu uma extensa agenda de megaeventos (Rio+20, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Web Summit) que impulsionou a sua internacionalização e “modernização”. Paes criou o plano de tornar o Rio uma cidade inteligente e inovadora, implementando uma série de projetos, por exemplo: o projeto de revitalização Porto Maravilha, uma parceria público-privada (2009); o Centro de Operações Rio, inaugurado para resolver os problemas de crime, congestionamento e desastres naturais (2010); o canal de atendimento unificado 1746 (2011). Como resultado, o Rio foi premiado como a cidade inteligente do ano no evento internacional de inovação urbana Smart City Expo (2013). Já no terceiro mandato, Paes criou duas estruturas para reforçar sua estratégia: a Coordenadoria Técnica de Cidade Inteligente, responsável por monitorar o posicionamento nos rankings e buscar premiações e captação de investimentos; e o Escritório de Dados para promover a cultura de dados e incentivar políticas públicas baseadas em evidências.
Mencionado na premiação da Smart City Expo, o 1746 é um canal de atendimento que visa fortalecer “o relacionamento de proximidade com o cidadão carioca” ao unificar órgãos e secretarias municipais e proporcionar melhorias na prestação dos serviços públicos. Seguindo exemplos como o 311 de Nova Iorque, o sistema funciona no modelo 24/7 com acesso via ligação telefónica, aplicação móvel, website, WhatsApp e presencial. Com uma média de setenta mil solicitações mensais em 2023, o 1746 é atualmente o principal sistema para a solicitação de providências e serviços públicos como a remoção de entulhos, o corte de árvores e a manutenção da iluminação pública e da infraestrutura viária.
O 1746 é reconhecido por buscar soluções para problemas estritamente operacionais e de curto prazo, por sua inflexibilidade na adaptação aos serviços de cada secretaria e por difundir a cultura do urbanismo orientado a dados (por exemplo, através de dashboards). Apesar disso, principalmente devido a uma mudança gerencial no início de 2023, o diálogo entre secretarias tornou-se mais fluido e as bases de dados geradas pelo 1746 passaram a compor atividades de planejamento e estratégia, visando solucionar problemas mais enraizados na cidade. Além disso, estes dados começaram a ser combinados com dados provenientes de organizações da sociedade civil, como o Fogo Cruzado, que indica os territórios dominados pelos poderes paralelos.
Contrastando com a agenda da prefeitura, territórios periféricos, como o complexo de favelas da Maré, são marginalizados pela gestão pública. Sofrendo com acesso restrito ou instável a serviços básicos, transporte e iluminação, estes territórios apresentam altos níveis de pobreza, desigualdade, crime organizado e insegurança pública. Além disso, sua população convive com recorrentes operações militares e incursões policiais extremamente violentas que resultam em repressão, medo e morte. Apesar disso – ou justamente por isso -, a Maré é um território de muitas lutas sociais articuladas que atuam, por exemplo, em cultura, saúde e segurança. Algumas dessas iniciativas centram sua organização em dados gerados pela comunidade local, como o CocôZap, iniciativa que criou uma base de dados gerada pelos cidadãos sobre problemas de saneamento. Este ativismo de dados pretende pressionar as autoridades locais ao questionar discursos hegemónicos através de uma “revolução periférica de dados”.
Por um lado, a prefeitura do Rio promove a “modernização” da cidade com um prefeito CEO, megaeventos, prémios de cidades inteligentes e projetos de regeneração – objetos de intensa crítica devido às suas falhas e deficiências, como a gentrificação, a elitização, o corporativismo e a negligência das desigualdades e injustiças urbanas. Por outro lado, a sociedade civil fervilha com ações subalternas que visam buscar a garantia de direitos básicos, como saneamento e segurança, e que visam lançar luz sobre narrativas invisíveis das periferias locais que foram historicamente escondidas e negligenciadas há muito tempo pelas políticas públicas.
Comparando estes dois casos de iniciativas urbanas orientadas por dados, a pesquisa investiga o atrito emergente entre arranjos sociotécnicos que disputam o poder no desenvolvimento urbano local, revelando formas divergentes de geração e uso de dados, produção de conhecimento e relação com o espaço urbano. Embora os arranjos tecno-políticos reforcem as estruturas de poder existentes, o agenciamento da inteligência urbana periférica rompe, mesmo que raramente, essas estruturas. No Rio de Janeiro, observamos este rompimento avançando e crescendo em/ e sobre territórios periféricos. Aos casos apresentados acima, CocôZap e Fogo Cruzado, somam-se outras iniciativas movidas a dados como LabJaca, Meu Corre, Instituto da Hora e Olabi, que também surgiram na cidade e buscam descentralizar o conhecimento científico, potencializar narrativas antirracistas na tecnologia, emancipar os direitos digitais, democratizar as tecnologias, construir narrativas sobre favelas e construir futuros anti-racistas e feministas.
Tomás Donadio
Doutorando em Estudos do Desenvolvimento no ICS-ULisboa (membro do Urban Transitions Hub), pesquisador no Laboratório Espaço e assistente de pesquisa no Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ), membro Jararaca – laboratório de pesquisa em tecnopolíticas urbanas. Projetos atuais: UrbanoScenes (ULisboa) e Tecnologia e inteligência urbana para o direito à cidade (UFRJ). tomasdonadio@gmail.com; tomas.donadio@ics.ulisboa.pt
Lalita Kraus
Professora adjunta no programa de graduação e pós-graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É vice-coordenadora do Laboratório Espaço e pesquisa temas relacionados a tecnologias urbanas, modelos urbanos inteligentes, digitalização e desigualdades socioespaciais. lalitakraus@ippur.ufrj.br
Aldenilson Santos
Geógrafo (Universidade Federal do Tocantins), mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e doutor em Geografia (Universitat Autònoma de Barcelona). Pesquisador do LabEspaço, pesquisa os impactos das tecnologias de informação e comunicação na vida cotidiana e a (re)configuração das pequenas cidades frente à globalização. alsvcosta@gmail.com
Ramon Carnaval
Trabalha na Prefeitura do Rio de Janeiro como Coordenador de Projetos do primeiro Datalake municipal no mundo no Escritório de Dados. Pesquisador no LabEspaço e mestrando no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialização em Política e Planejamento Urbano e Regional. ramon.carnaval@gmail.com
Artigo publicado originalmente no Blogue SHIFT – Grupo de investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa)