Reflexões num 20 de novembro, dia da Consciência (de luta!) Negra num contexto de reconstrução de políticas públicas de igualdade racial

Boletim nº 75, 30 de novembro de 2023

Renato Emerson dos Santos – Professor do IPPUR/UFRJ

No último dia 20 de novembro, o presidente Luis Inácio Lula da Silva assinou o decreto n. 11.786, que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola. Numa cerimônia com importante presença de lideranças sociais de movimentos negro e quilombola (incluindo as lideranças que hoje ocupam cargos no próprio governo), a cerimônia pública batizada de “Brasil pela Igualdade Racial”, realizada na data reivindicada há décadas pelo Movimento Negro Brasileiro, funciona como uma resposta e um marco simbólico do atual governo na busca de demonstração de compromisso com as agendas da luta anti-racismo. É hora, portanto, de celebrar essa conquista e a reconstrução de políticas de Promoção da Igualdade Racial (PIR), mas também de refletir sobre as dificuldades dos avanços no campo, as fragilidades evidenciadas nos desmontes realizados nos anos anteriores do ciclo Temer-Bolsonaro (sobretudo na gestão deste último). Estas reflexões são fundamentais para pensarmos não apenas a ampliação destas políticas, mas a sua consolidação no âmbito do Estado e da sociedade brasileira.

Este ano de 2023 é um ano de retomada das políticas de Promoção da Igualdade Racial. A criação do Ministério da Igualdade Racial ocorre quase oito anos após a perda de status ministerial da pasta – antes, de 2003 até 2015, a SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) teve status de ministério, sendo incorporada em 2015 ao então criado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Se naquele momento a fusão com outros ministérios associada à manutenção da titular da SEPPIR na condição de ministra preservou de certa forma o status institucional da Igualdade Racial, nos anos seguintes o que se viu foi o enfraquecimento dessa agenda. Primeiramente, no organograma institucional a SEPPIR foi rebaixada a secretaria – o que, numa estrutura burocrática hierárquica como é a do Estado brasileiro, enfraquece o poder de diálogo e barganha frente ao conjunto de órgãos com os quais exerce interlocução na busca da capilarização da sua agenda. Voltar a ser ministério significa ter alguém na condição de ministra que pode assim estabelecer diálogos horizontais com outras pastas e suas lideranças, assim como com as autoridades dos poderes Legislativo e Judiciário. Ainda que pouco robusta, é verdade, voltar a ter uma estrutura de secretarias (são três: a Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo e a Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos) e diretorias é fundamental para reunir quadros dedicados a esta pauta.

Esta reestruturação institucional é crucial para iniciar a reversão do desmonte dos anos anteriores. Desde a sua criação enquanto SEPPIR, a pasta da Igualdade Racial é um tipo de órgão chamado de “não-finalístico”, ou seja, que não executa diretamente as políticas públicas, mas tem a missão de capilarizar a sua agenda por toda a estrutura do Estado brasileiro (Santos, 2018). Isto significa assumir papeis de provocação, proposição, articulação, assessoramento, acompanhamento e avaliação de políticas junto a outros órgãos seja do poder Executivo, seja do Legislativo ou do Judiciário – e, inserindo a equidade racial no pacto federativo brasileiro, ou seja, dialogando também com estados e municípios, além de empresas públicas, autarquias e mesmo entes privados. É evidente que a estrutura administrativa disponível não é suficiente para tal desafio. O que se acredita é que o papel de protagonismo político da liderança máxima do governo atual, o presidente Lula, disseminando seu compromisso com a pauta do combate ao racismo e a promoção da igualdade racial, ajude a sensibilizar agentes públicos, reverberando o fazer político do Movimento Negro Brasileiro. Este papel da liderança política busca assim encarnar o polo oposto ao visto nas últimas gestões presidenciais, sobretudo o mandato 2019-2022. Naquele mandato, o que vimos foi um conjunto articulado de mensagens, comandos e ações políticas de enfraquecimento da pauta (Santos, 2020): a profusão de discursos contra as políticas de igualdade racial desde a campanha eleitoral do referido presidente, a escolha de gestores manifesta e publicamente contrários a tais políticas, o esvaziamento e mudança da composição com a retirada de lideranças do Movimento Negro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), e a imposição da inércia estatal no próprio cumprimento de deveres constitucionais em relação à pauta, como por exemplo a morosidade e paralisação dos processos de reconhecimento e principalmente titulação de comunidades remanescentes de quilombos.

O que se apresenta no novo ciclo é a emanação de comandos e mensagens políticas favoráveis a tais políticas. A questão é: serão elas capazes de superar as dificuldades e resistências políticas e institucionais ao debate racial? Com efeito, a pasta da Igualdade Racial, como um órgão não-finalístico, que dialoga com outros órgãos, entes e instâncias da administração pública em prol da absorção da agenda antirracismo, funciona como um agente que na verdade “disputa” tal perspectiva. Neste sentido, funciona como uma espécie de “linha de continuidade” do Movimento Negro dentro do Estado, se pensamos que a construção de políticas públicas resulta das disputas de crenças entre grupos, que assim funcionam como “coalizões de defesa” (Vicente, 2015). Aqui localizamos o nó górdio das políticas de promoção da igualdade racial, que é ampliar as adesões de agentes ao compromisso com a equidade racial.

A inserção de políticas que aqui estamos chamando de Promoção da Igualdade Racial no âmbito do Estado brasileiro é algo que vem sendo construído nas últimas quatro décadas. O primeiro órgão voltado ao atendimento das demandas da população negra no Brasil foi o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do estado de São Paulo, em 1984 (Santos, 2006). Era uma conjuntura política que envolvia o enfraquecimento da ditadura e a formação de coalizões políticas de oposição, que ganharam eleições em 1982 contando com apoios de frações do Movimento Negro, frutificando na incorporação de militantes negros ou na assessoria direta ao governador (caso de São Paulo), ou em cargos no primeiro escalão da administração (caso do Rio de Janeiro, onde o mandato de Leonel Brizola nomeou três pessoas negras para as secretarias de Justiça, Promoção Social e Trabalho e Habitação). Neste contexto, vitórias importantes começaram a ser transformadas em instrumentos de fortalecimento da luta (exemplos e jurisprudências para novos pleitos), além de gradativamente ampliar a relação com o Estado e a busca por direitos e políticas públicas como estratégias do Movimento Negro. Assim foi com as mobilizações negras para a Assembleia Nacional Constituinte (cuja finalização foi no mesmo ano do centenário da Abolição da Escravidão, 1988), no simbólico ano do tricentenário do assassinato de Zumbi dos Palmares e da derrota deste quilombo pelas forças coloniais (1995) quando o movimento organizou a Marcha Zumbi dos Palmares (rumo a Brasília, numa busca de provocação dos poderes centrais da república) e também nas intensas articulações em 2001 quando da preparação da Conferência Mundial contra o Racismo da ONU em Durban, na África do Sul.

Ao longo de todo esse processo desde então, o Movimento Negro toma o Estado como uma “arena”: ele vai protagonizar dentro da institucionalidade do Estado as disputas políticas visando o combate e a superação do racismo, buscando a promoção de políticas públicas. Para isto, uma conquista é mobilizada como instrumento para lutar por novas conquistas. Por exemplo, quando olhamos a Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de História da África e dos Africanos, bem como a história e as contribuições das populações negras na formação social, econômica e cultural do Brasil, devemos compreender o quanto ela é fruto das leis estaduais e municipais com teor semelhante promulgadas na década anterior (Santos, 2005), que por sua vez foram frutos de interpretações do princípio da igualdade lavrado na Constituição de 1988 (Silva Jr., 1998), utilizado como ferramenta de disputa em Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais que se readequavam ao marco federal.

Assim, o Movimento Negro vem, desde então, mobilizando como conquistas/instrumentos três construções principais: (i) órgãos – como a SEPPIR e agora o MIR, mas antes, como o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro/COMDEDINE no Rio de Janeiro criado em 1987 ou a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras/SEDEPRON do estado do Rio de Janeiro criada em 1991; (ii) legislações – como as citadas Lei 10.639/2003 e o Decreto 11.786/2023, ou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias n. 68, que reconheceu o direito à titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos e o Decreto 4.887/2003 que o regulamentou, bem como o Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.888/2010, que integra, articula e até mesmo redefine o conjunto de legislações antirracismo; e (iii) planos e programas, que viabilizam ações intersetoriais e compromissos interinstitucionais, definindo eixos de ação, competências entre os órgãos e objetivos das políticas, como o Programa Diversidade na Universidade (2002), o Programa Brasil Afroatitude (2004), ou o Programa Brasil Quilombola (2004). Órgãos, legislações e planos/programas são conquistas do Movimento Negro que este ator social mobiliza para exercer pressões junto ao Estado – pensado, aqui, como uma arena múltipla de disputas, afinal, estamos falando de uma estrutura federativa (com níveis federal, estadual e municipal – entes com relativa autonomia dada pelo pacto federativo) e com três poderes (executivo, legislativo e judiciário), além de autarquias e empresas públicas. Este Estado é marcado por uma lógica autárquica (Oliveira, 1982), em que cada repartição vai operar com esta relativa autonomia condicionando comportamentos, lógicas e diretrizes políticas diversas e, até mesmo, antagônicas. Daí uma conquista ter de ser mobilizada como ferramenta para disputa em outra arena do mesmo Estado, amplificando os desafios para as “coalizões de defesa” (Vicente, 2015) que se mobilizam como grupos de interesse em torno das transformações sociais e culturais propostas.

É a partir deste quadro que nos voltamos ao cenário atual e à assinatura do decreto da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ). Esta conquista é mais um passo em relação às duras, difíceis (e, por que não afirmar, frágeis!) conquistas anteriores. As políticas para as populações quilombolas, abertas a partir da conquista do ADCT 68 (uma reivindicação construída pelas comunidades negras rurais desde o início da década de 1980, que chega como recomendação da Convenção Nacional “O Negro e a Constituinte” em 1986), vão sendo nas décadas seguintes pluralizadas: da titulação fundiária, que aparecia em 1988, ao reconhecimento enquanto povo tradicional, e portanto abrigado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, vão se agregando o entendimento de atenções culturais, educacionais, ambientais, de saúde específicas. Isto pluraliza as esferas da administração pública com atribuições e competências em relação às comunidades quilombolas – e, com isto, multiplica as arenas de disputa das lutas quilombolas. Se, em campos como a educação, a pauta quilombola experimenta avanços (com a publicação de materiais, diretrizes curriculares para a educação quilombola, definição de escolas quilombolas e pautas para aquelas que atendem a quilombolas e mesmo uma diretoria voltada para a educação quilombola dentro do Ministério da Educação, entre outras), em campos como a própria titulação fundiária os avanços são extremamente lentos. O campo da justiça emerge como uma arena estatal na qual as lutas quilombolas demoram a alcançar vitórias, e o tempo cobra preços. O Decreto 4.887/2003, que regulamentava a titulação quilombola, definindo critérios, competências institucionais, e abrindo possibilidades diversas a partir da incorporação dos preceitos da Convenção 169 da OIT, foi objeto de um questionamento jurídico através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo partido Democratas. Esta ação, iniciada em 2004, só teve seu julgamento concluído pelo Supremo Tribunal Federal em 2018, ou seja, 14 anos depois. A insegurança jurídica da demora na tomada de decisão, obviamente, fragiliza as comunidades em luta. Comunidades ficam emperradas em seus processos de titulação enquanto alcançam vitórias em áreas como educação, cultura e até saúde – mas, em áreas como infraestrutura, a insegurança fundiária pesa para o não atendimento de suas reivindicações.

Assim, os avanços nas pautas antirracismo das lutas quilombolas são movimentos de ida-e-volta, não sincrônicos, e marcados pela fragilidade institucional. A PNGTAQ deve ser encarada desta forma. Ela traz avanços frente aos dispositivos legais anteriores, como o Decreto 4.887/2003 ou o Estatuto da Igualdade Racial. Ela permite o fortalecimento da autonomia das comunidades, ao sustentar a elaboração de planos locais e afirmando a participação social dos grupos através das suas formas organizativas. Ela reconhece bandeiras de luta recentes das comunidades quilombolas, como sua inserção nos debates sobre justiça climática e racismo ambiental. Ela valoriza os patrimônios culturais dos grupos, e aponta a necessidade do envolvimento de órgãos de diversas áreas (educação, cultura, etc.) na preservação e na transmissão intergeracional de seus patrimônios. Sobretudo, ela busca incorporar dispositivos para solucionar os conflitos entre comunidades e entes, incluindo entes públicos. Questões como os conflitos fundiários e a sobreposição de territórios quilombolas com unidades de conservação, que comumente geram choques entre as diferentes formas, matrizes e racionalidades de relação com a natureza, têm possibilidades de soluções previstas na PNGTAQ.

O desafio maior, que continua, é a garantia do cumprimento de atribuições por parte dos agentes estatais. Acreditamos que, hoje, o principal objetivo da luta quilombola (e, de toda a luta antirracismo do Movimento Negro) junto ao Estado brasileiro é assegurar que os entes cumprirão as missões previstas nos dispositivos legais que tocam nos temas. Talvez, o que deveria estar colocado na ordem do dia dessa agenda, como arena prioritária para a disputa antirracismo no âmbito estatal atualmente, é o comprometimento dos órgãos de controle do próprio Estado: Tribunais de Contas, Controladoria Geral da União e o próprio Ministério Público. Diante da flagrante morosidade (para as comunidades) do tempo de ação do Poder Judiciário, estes são talvez os instrumentos a serem disputados, que podem exercer pressões sobre as instituições diante de conjunturas adversas (como a que vimos no mandato presidencial passado). Evidentemente, considerando que estes são, também, órgãos, sujeitos às disputas e influências por diversas forças sociais – portanto, os vemos também como arenas, nas quais até o momento a luta antirracismo vem predominantemente sendo derrotada. Mas, há exceções, há também neles alguns aliados, algumas vitórias. Que devem ser tomadas como instrumentos para novas lutas.

 

Referências

Brasil, Presidência da República (2023). Decreto n. 11.786, de 20 de novembro de 2023.

Oliveira, Chico (1982). O estado e o urbano no Brasil. Espaço e Debates, v. 2, n. 6, p. 36-54.

Santos, Ivair Augusto  (2006). O  movimento  negro  e  o Estado  (1983-1987).  São  Paulo: Prefeitura de São Paulo.

Santos, Renato Emerson (2018) Ações Afirmativas no combate ao racismo: uma análise da recente experiência brasileira de promoção de políticas públicas. REVISTA QUAESTIO IURIS. vol. 11, nº. 03, Rio de Janeiro.

Santos, Renato Emerson (2020). A questão racial e as políticas de promoção da igualdade em tempos de golpe: inflexão democrática, projetos de nação, políticas de reconhecimento e território. Caderno Prudentino De Geografia, 4(42), 200–224. Recuperado de https://revista.fct.unesp.br/index.php/cpg/article/view/7877

Santos, Sales Augusto (2005) “A Lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro”. In: ________ (org.). Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

Silva Jr., Hédio (1998). Anti-Racismo: Coletânea de Leis Brasileiras (Federais, estaduais, municipais). São Paulo: Editora Oliveira Mendes.

Vicente, Victor Manuel Barbosa. A análise de políticas públicas na perspectiva do modelo de coalizões de defesa. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 19, n. 1, jan./jun. 2015, p. 77-90.