Como pagar as consequências econômicas do COVID-19 ou a janela de oportunidades para mudar o status quo

Boletim nº 17 – 23 de abril de 2020

 

Por Renata Bastos da Silva¹ e Daniel Negreiros Conceição²

 

Logo no primeiro final de semana da quarentena brasileira, fomos brindados com a análise de colegas economistas[3], da área da gestão pública, a qual nos revelou que o pensamento econômico pode nos ajudar a superarmos esse momento difícil. Basicamente, nosso desafio se resume à seguinte pergunta: Como pagar as consequências econômicas do COVID-19?

Os colegas invocaram, entre outros autores, John Maynard Keynes. Keynes várias vezes foi incitado a atuar sobre o setor público britânico e, quando o fez, abertamente indicou políticas públicas para civilizar o planeta. Mas, numa linha sempre ziguezagueante e nunca linear, as ideias desse pensador se associam à política econômica de cunho democrata, se aproximando assim, por exemplo, da política revolucionária da socialdemocracia russa, às vésperas da Nova Política Econômica (NEP)[4], quando escreveu sobre As consequências econômicas da paz (1919)[5]. Esse é o ponto. Keynes sempre foi um analista propositivo da conjuntura. Por isso, quem conhece mais seus escritos sabe que, além da economia, ele acompanhava a política e as artes, sem dissociar nenhuma dessas áreas[6]. Já em seu livro de 1919 ele nos mostra um momento em que os representantes dos Estados Nação tiveram que se reunir, na Conferência de Versalhes, para elaborar políticas públicas para o mundo após os gastos públicos consequentes da Primeira Guerra Mundial.

Keynes foi um economista singular pois, como outros de sua geração, participou de mais um momento como esse quando enfrentou, ainda em 1940, o tema de pagar a Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, percebemos que não é à toa que alguns líderes europeus, hoje, estão mencionando que o abalo das consequências econômicas do COVID-19 é tão forte como o do Pós Segunda Guerra.

Em How to pay for the war[7] (Como pagar a guerra), Keynes inicia sua intervenção, naquela conjuntura, no primeiro capítulo, intitulado As características do problema, afirmando que “Não é fácil para uma comunidade livre se organizar para a guerra. Não estamos acostumados a ouvir especialistas ou profetas. Nossa força reside na capacidade de improvisar. No entanto, também é necessária uma mente aberta para ideias não experimentadas. Ninguém pode dizer quando chegará o fim. Nos serviços de guerra, reconhece-se que a melhor segurança para uma conclusão antecipada é um plano de longa duração. É ridículo proceder a uma suposição diferente nos serviços econômicos; -que é o que estamos fazendo atualmente. Na frente econômica, falta-nos – para emprestar uma frase de M. Reynaud – não recursos materiais, mas lucidez e coragem.”[8]

Assim, seguindo um caminho luminoso (expressão de Mariátegui), vamos à exposição de motivos do atual Ministro da Economia do Brasil, para depois, levantarmos as questões sublinhadas pelas economistas Laura Carvalho, Mônica de Bolle, e das nossas colegas Lena Lavinas e Tatiana Roque, e para não nos restringimos somente às vozes femininas, salientamos as recentes entrevistas de Armínio Fraga, que se referem à rede de proteção social de nosso Estado.

O economista Paulo Guedes, alçado à Ministro da Economia do governo de nossa República Democrática, em sua Exposição de Motivos número 70 de 18 de março de 2020, recorre, para o reconhecimento de calamidade pública, aos termos do artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (a conhecida Lei de Responsabilidade Fiscal), com efeitos até 31 de dezembro de 2020, em decorrência da pandemia, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Primeiro destacamos a data, que fica definida até 31 de dezembro de 2020, ou seja, abarcará também o período eleitoral. Portanto, mantido o calendário eleitoral brasileiro, pode levar vantagem quem está, como falamos no linguajar político, com a máquina da administração pública. Daí não ser nada fácil a discussão de realocar o Fundo Eleitoral para os gastos públicos com destino ao enfrentamento da calamidade. Importa reter que o Decreto Legislativo Nº 6 de 20 de março de 2020 prevê mecanismos de fiscalização e acompanhamento pelo Congresso Nacional da calamidade pública. Mas, voltemos para os aspectos econômicos, que convoca a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), em especial seu artigo 65, que trata de: “Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70; II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.”

Abre-se aí uma janela de oportunidades para que o Congresso Nacional e a sociedade civil organizada atuem em prol do que os economistas lúcidos defendem quanto à recomposição e ampliação das redes de assistência social do Estado brasileiro. No entanto, a exposição de motivos não revela que o capítulo da Constituição Federal de 1988, que trata da Seguridade Social está em vigor, ainda que muito pouco aproveitado, devido a inúmeras questões, entre elas a questão orçamentária. Mas, é muito importante que a sociedade civil conheça esse capítulo, e que nada do que está se colocando sobre o tema das redes de proteção social é de realização fácil. E há disputa nessa realização. Como apontamos, os economistas lúcidos que apresentam uma proposta para tal; qual seja, ampliar a renda básica a mais pessoas que estão, e no cálculo deles sempre ficarão fora.

A experiência recente portuguesa, para enfrentar os desdobramentos da crise de 2008, e retomar o equilíbrio dos fundamentos macroeconômicos, através do auxílio do economista Olivier J. Blanchard[9], e se valendo na política de uma frente chamada de “geringonça”; nos mostra que há possibilidades de revertemos o status quo, e essa será uma janela de oportunidades única, nos valendo de nossa frente histórica que possibilitou a construção da constituição de 1988. Mas, observamos que é necessário, esse olhar para a nossa história, para superarmos a suposição dos economistas lúcidos, de que após 12 ou 18 meses passada a pandemia, em suas previsões, tudo ficará como sempre foi. Acreditamos que isso não se passará.

Voltemos ao capítulo da Seguridade Social (que abrange as redes de proteção da Saúde, Previdência Social e Assistência Social) de nossa atual constituição federal, em seu artigo 194 registra que “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”

Neste sentido, o tema da Assistência Social, definida no Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Essa é a chave para a mudança do status quo brasileiro e mundial. Pois defender uma rede de proteção que tenha como premissa uma renda básica, que é a defesa dos economistas lúcidos citados acima, é um caminho louvável, mas, que pode nos colocar de volta ao caminho dos trilhos do mundo anacrônico de outrora que tem batido em nossas portas, e tomado a sociedade brasileira em sua cultura, e até mesmo em sua matriz religiosa.

Nesse contexto em que o mandatário da nossa República insiste em pressionar as instituições democráticas, devemos resgatar nosso momento de frente e mostrar abertamente à sociedade brasileira e ao mundo que o renascer depois dessa crise é uma janela de oportunidades para revertemos a equação anacrônica de outrora como condottiere da sociedade, ou seja, é a política de assistência social que deve ser a novíssima condottiere nesse processo como na pauta política se quisermos alçar a Casa Comum para todos. Pois no longo prazo, como disse Keynes, todos estaremos mortos, mas nosso legado as nossas crianças deve ser o da oportunidade de se construir um mundo novo na hora nova, parafraseando Gramsci, é a hora do novo e nessa hora é o momento do novíssimo.

Notas:

1. Professora de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutora em Políticas Pública e Formação Humana (PPFH), pelo programa de pós-graduação PPFH da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). E autora do livro Lord Keynes pelo Amauta Mariátegui: A crítica da Economia de Keynes na Política de Mariátegui. Jundiaí (SP): PACO Editorial, 2019.

2. Macroeconomista e professor de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.

3. Trata-se do artigo: Pandemia de coronavírus ensina ao mundo a verdade sobre o gasto público. In: https://www.cartacapital.com.br/economia/pandemia-de-coronavirus-ensina-ao-mundo-a-verdade-sobre-o-gasto-publico/

4. NEP – Novaya Ekonomiceslaya Politika foi a política econômica seguida na Rússia a partir dos anos de 1920.

5. KEYNES, John Maynard. As consequências econômicas da paz; tradução de Sérgio Bath; prefácio Marcelo de Paiva A breu. — São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v. 3). Sobre esse assunto ver também: SILVA, R. B. Da. Lord Keynes pelo Amauta Mariátegui: A crítica da Economia de Keynes na Política de Mariátegui, op. cit. 2019.

6. Ver os volumes de The collected writings of John Maynard Keynes. London: Macmillan, 1971. Organizado por Elizabeth Johnson.

7. KEYNES, John Maynard. How to pay for the war: a radical plan for the chancellor of the exchequer. London: Macmillan and Co. Limited, 1940.

8. Tradução livre de Keynes, opt. cit. 1940, p. 1.

9. É um economista francês e professor de economia do Massachuttes Institute of Tecnology – MIT. Foi de setembro de 2008 até setembro de 2015 economista-chefe do Fundo Monetário Internacional. Ele é colega da economista Mônica De Bolle na Johns Hopkins University.