Cuidado, planejamento e cotidiano
Boletim nº 70, 31 de maio de 2023
Por Maria Aparecida Azevedo Abreu
No último 5 de maio, a Organização Mundial de Saúde declarou o fim do estado de emergência de saúde pública referente à pandemia de covid-19. Durante a pandemia, todas as pessoas foram afetadas em suas rotinas, algumas se expondo mais ou menos a riscos. Tal afetação geral trouxe à tona temas como cuidado e cotidiano.
Para alguns e algumas, o cotidiano se tornou mais enfadonho. Para todes, veio a tensão dos cuidados de higiene e sanitários. Andar pela rua e respirar já não eram atos que prescindiam de planejamento ou algum tipo de antecipação de cuidados. Os trabalhos domésticos e externos ao mundo da casa se confundiram, para boa parte de trabalhadores e trabalhadoras.
Com a pandemia, do ponto de vista analítico, muitos apontaram que os temas do cuidado e do cotidiano não sairiam mais do centro das reflexões sócio-políticas. Ainda não se pode confirmar este prognóstico. Simultaneamente ao fim da pandemia, outro tema tem sido frequentemente abordado: a inteligência artificial e a extinção da necessidade de boa parte dos trabalhos remunerados. Nesta extinção, estaria incluído o cuidado?
Os estudos sobre o trabalho do cuidado são inúmeros e bastante sistemáticos. A sociologia e a economia do care[1] têm vasta produção propriamente acadêmica e também governamental. No governo brasileiro, foi criada uma Secretaria Nacional de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e recentemente foi publicado o Decreto nº 11.460, de 30 de março de 2023, criando um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para que seja formulada a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados[2].
De acordo com as informações oficiais da própria Secretaria, “os eixos prioritários de atuação incluem o desenvolvimento de políticas para crianças e jovens – com especial atenção para a primeira infância –, pessoas com deficiência e pessoas idosas, bem como para trabalhadoras e trabalhadores do cuidado, sejam elas remuneradas ou não. Para construção da política e do plano, o GTI fará um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no País, incluindo a identificação das políticas, dos programas e dos serviços existentes relativos à oferta e às necessidades de cuidados.”[3]
Em outras palavras, a Política e o Plano Nacional de Cuidados deverão estar voltados para os ciclos de vida em que o cuidado é necessário, bem como para as pessoas que necessitam mais de cuidado, como os deficientes físicos, e também para a garantia do trabalho decente de quem cuida.
O trabalho de cuidado, no mundo, é predominantemente realizado por mulheres, de forma remunerada ou não. Em vários países, como no Brasil, além de feminizado ele apresenta também um marcador racial: a maior parte das trabalhadoras do cuidado são mulheres e negras[4].
Essa atividade, remunerada ou não, afeta decisivamente a vida das mulheres em seus planos de vida e modos de viver. Conforme a literatura tem apontado há muito, a responsabilidade pelas atividades de cuidado é resultado de uma dupla delegação: em primeiro lugar, o Estado delega para as famílias a responsabilidade quase exclusiva sobre a administração dessa atividade, permanecendo apenas como agente subsidiário. Em segundo lugar, no interior das famílias, na divisão das atividades domésticas, a mulher em geral acaba arcando com a maior responsabilidade, seja por arranjos do próprio casal, seja porque, na economia do trabalho, aquele realizado pelos homens é mais valorizado, então, se alguém tem de deixar uma segunda atividade para cuidar, é a atividade profissional da mulher a sacrificada.
Mas não são os aspectos de gênero que serão abordados neste texto. O destaque aqui será para a primeira delegação acima apontada, e o quanto o planejamento do cuidado, não somente pela família, mas principalmente pelo Estado, por meio de políticas públicas, pode tornar o cotidiano e, portanto, a vida das pessoas, melhor. A pergunta feita é: como o Estado, por meio de suas políticas, pode usar o planejamento para tornar a vida das pessoas melhor?
De forma acertada, o GTI é composto por uma ampla de ministérios, incluindo o de Planejamento e o das Cidades, além do de Educação, da Saúde, das Mulheres e outros.
Em primeiro lugar, é necessário que haja equipamentos públicos – creches, casas de cuidado para idosos e de cuidados de pessoas com diversos tipos de vulnerabilidade – acessíveis para toda a população que necessita desses cuidados. Além de retirar o peso da responsabilidade das famílias, tal medida contribui para a socialização, tanto de crianças e adolescentes, como dos idosos, diminuindo a solidão presente nesta faixa etária, muitas vezes agravada pelos conflitos familiares que se acumularam ao longo dos anos.
A acessibilidade a esses equipamentos não diz respeito apenas ao acesso físico, como existência de rampas, pisos adequados e elevadores, mas, principalmente, à acessibilidade por meio de transporte público. Para isso, em primeiro lugar é preciso que os municípios, em seus planos diretores, tenham um plano de equipamentos urbanos, o que não está presente, por exemplo, no Projeto de Lei Complementar nº 44/2021 do município do Rio de Janeiro[5], que revê o Plano Diretor em vigor. No artigo 42 do PLC, sobre equipamentos públicos, há definições e diretrizes genéricas, mas o planejamento específico é delegado aos Planos Setoriais, cuja intersetorialidade, necessária para integrar políticas de mobilidade com o planejamento da construção dos equipamentos públicos, é de difícil execução.
Em segundo lugar, é necessário que as linhas de transporte, em seus trajetos, além de estabelecer os equipamentos públicos como pontos de referência, descrevam, no acesso para o público, este acesso. Se a maioria da população tem celular e pode traçar rotas, os equipamentos públicos têm de fazer parte dessa programação de rotas. Neste sentido, a integração entre planejamento territorial e de inovação, permitida pela GTI pode ser bastante profícua.
Esta integração descrita depende de muitas melhorias em nossos serviços públicos, é certo. Mas a direção nela contida parece não estar clara nos planos de governo existentes. A direção é: qualquer equipamento público pode ser uma forma de o Estado se relacionar com a sociedade de forma integral e ser uma referência espacial e territorial para cidadãos e cidadãs. A construção de equipamentos com arquitetura de referência – o que não significa ostensividade ̶ , com acessibilidade e atrativas do ponto de vista paisagístico, pode ser um instrumento de aproximação do Estado em relação à construção de uma cidadania constituída não apenas por documentos ou relações burocráticas, mas forjada em relações respeitosas e de amparo.
Além dessas melhorias, talvez seja também necessário modificar a percepção do planejamento. Ele não pode ser visto como amarra ou como instrumento autoritário, do qual não se pode escapar. Em outras palavras, planejamento não pode ser confundido com vigilância e punição. Mas também não pode ser visto como algo extraordinário, resultado de uma grande ideia ou de um plano que durará e estabelecerá marcos centenários.
O cuidado é uma atividade permanente, que pode ser delegada, mas cuja responsabilidade é de alguém que pode vir a perder o sono se ela não for realizada. É uma atividade ininterrupta, que requer não só responsabilidade, mas zelo e vigília. Neste aspecto, ela é semelhante a vigiar, mas de outra natureza, porque sua finalidade não é sancionar, é semear, proteger, acolher e tratar. Há muitas pessoas que nascem e não recebem os cuidados necessários. Neste caso temos o abandono, ou o desamparo, cujas consequências psíquicas e sociais são impossíveis de abordar em um pequeno artigo como este. No entanto, é razoável sustentar que é desejável que o Estado tenha políticas públicas para evitar o abandono e o desamparo de cidadãos e cidadãs.
Por outro lado, o cuidado é uma atividade contingente, que exige rotina, mas é constituída também pelo imprevisível e imponderável. Nem sempre é possível prever o acometimento de uma doença, ou quando algo extraordinário possa acontecer de modo a adaptar a rotina, sem desconstituí-la.
Para que o Estado possa assumir a sua parcela de responsabilidade nessa atividade, um ponto de partida claro sobre a sua própria constituição precisa ser estabelecido. O Estado que cuida não é o Estado paternalista – nem maternalista – mas é o que leva em consideração todos os dias de seus cidadãos e cidadãs, não apenas para cobrar tributos, ou para vigiar seus crimes, como também para garantir que a vida, além de efetivamente garantida, possa acontecer. É preciso vislumbrar que a vida possa ser vivida em um espaço doméstico minimamente digno, que as pessoas possam sair de casa sem medo, tanto de crimes quanto da prática legalizada ou naturalizada de expropriações corporais ou patrimoniais -, para equipamentos onde quererão ao menos ficar por algumas horas, convivendo em espaços de civilidade e percorrendo caminhos dignos, cujo alcance não requeira um esforço sobre-humano.
As exigências de um Estado como este são muitas. Principalmente porque há uma realidade social pré-existente em que não houve, em qualquer momento, na história brasileira, um Estado cuidador. Então, há estruturas territoriais e sociais que orientam gastos públicos e cuja manutenção não pode ser interrompida e que impedem que o Estado atue como se tudo começasse agora. Além disso, há práticas sociais que não mudarão conforme o planejado[6]. E, neste aspecto, o planejamento deverá andar ao lado do cotidiano das pessoas, por meio de um monitoramento das políticas públicas que não se reduz a indicadores de satisfação ou de número de atendimentos.
Neste aspecto, os avanços tecnológicos estão a nosso favor. Pesquisas de usos do tempo, iniciadas de maneira trabalhosa no Brasil[7], podem ser feitas de maneira mais fácil do que já foram e o monitoramento das rotinas das brasileiras pode vir a ser feito de forma meticulosa e precisa, sem depender tanto de fatores imponderáveis, como a memória dos entrevistados e o recrutamento de servidores públicos para aplicarem questionários que exigem competências sofisticadas. As atividades estarão registradas em um aplicativo de celular.
A produção de conhecimento sobre o que, quando e como as pessoas estão fazendo nunca esteve tão a nosso alcance. Transformar esse conhecimento em fonte de planejamento de cuidado é o desafio que requer nossa paciência, persistência e a aposta íntegra em um futuro melhor não apenas para indivíduos, mas para a sociedade como um todo.
[1] GUIMARÃRES, Nádia; HIRATA, Helena e SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho de care no Brasil, França e Japão. Sociologia e Antropologia. Jan-jun 2011. https://doi.org/10.1590/2238-38752011v117 https://www.scielo.br/j/sant/a/kwYwJSWSd38BRbd5fCBGYmw/abstract/?lang=pt, acessado em 28/05/2023NORONHA, José Carvalho de; CASTRO, Leonardo; GADELHA, Paulo (org.). Doenças crônicas e longevidade: desafios para o futuro [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Edições Livres, 2023. 337 p. Acessível em pdf em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/57831
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11460.htm [3] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/obrasilvoltou/cuidado/grupo-de-trabalho-interministerial-vai-propor-politica-nacional-de-cuidados [4] https://doi.org/10.1590/1413-81232020261.30352020 [5] http://www.camara.rio/plano-diretor/cronograma-pd [6] Para ilustrar este ponto, é exemplar o estudo de Goldman, Wendy, Mulher, Estado e Revolução. São Paulo: Boitempo, 2014 [1993], em que aponta como as leis aprovadas no contexto pós-revolucionário russo, em 1918, que eram coerentes com a ideia de igualdade conjugal e levavam em consideração a maternidade na esfera trabalhista, ao serem aplicadas em uma sociedade ainda com preconceitos contra as mulheres e sem um número adequado de creches, acabaram por propiciar o aumento de crianças abandonadas e de mulheres se prostituindo por necessidade financeira. [7] AGUIAR, Neuma. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Econômica, v. 12, n. 1, 2010. AGUIAR, Neuma. Mudanças no uso do tempo na sociedade brasileira. Política & Trabalho, n. 34, 2011.