Epidemia e Ordem Pública – A Cidade do Rio de Janeiro no século XIX

Boletim nº 27 – 04 de julho de 2020

 

Por Beatriz Gomes de Souza, Daiane M. Sousa Santos, Maria Fernanda Fontenele e Mayara S. S. Pinheiro¹

 

A quarta live do Ciclo de Debates IPPUR, ocorrida no último dia 15, no canal da Agência IPPUR no YouTube, contou com a participação da profa. Fania Fridman e o prof. Carlos Henrique Ferreira Jr sobre o tema “Epidemia e Ordem Pública: A cidade do Rio de Janeiro no Século XIX”. A palestra mediada por Rafael Vidal tratou da perspectiva histórica da cidade do Rio de Janeiro no século XIX, no que diz respeito à relação entre os problemas de saúde pública decorrentes de diversas epidemias da época e o território. Abordada por duas correntes ideológicas, os pesquisadores apontaram as proposições feitas para abrandar os efeitos das crises sanitárias que assolaram a cidade na época. O debate baseou-se na pesquisa desenvolvida para a produção de um artigo para o livro “Na Saúde e na doença: história, crises e epidemias:reflexões da história econômica na época da Covid-19”, organizado por Rita Almico, James Goodwin Jr. e Luiz Fernando Saraiva.

Inicialmente, Fania Fridman apresentou o capítulo do livro, cujo nome deu origem ao debate. O artigo trata de diversas epidemias que afligiram o território central do Rio de Janeiro no século XIX, sob as perspectivas do Socialismo Romântico e do trabalho do médico, vereador e presidente da Junta de Saúde, José Pereira Rego, o barão do Lavradio. Por conseguinte, os autores tiveram por objetivo aprofundar as medidas adotadas do ponto de vista do planejamento urbano e regional.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar a definição teórica de Socialismo Utópico, definido por Fridman, como uma forma de denúncia da modernidade europeia, desde o século XVIII. Desse modo, apesar dos avanços civilizatórios, a modernidade causava enorme sofrimento às grandes cidades. Em função disso, a pesquisadora aponta que propunha-se, como via de resolução de conflitos, a criação de um socialismo cristão ou de uma cidade republicana, cuja organização possuísse um respaldo no setor industrial, no descanso dominical, na igualdade das mulheres, nas sociedades de auxílio mútuo e na homeopatia.

A higiene pública, tratada como um movimento higienista, consistia em uma medicina com o intuito de implementar políticas de prevenção de doenças e para ornar uma cidade sã. Era, para os Socialistas Românticos, um modelo de organização para tornar a cidade um corpo saudável.

Além disso, Fania Fridman apresenta duas perspectivas complementares à noção higienista. A primeira é que as doenças podem ser transmitidas pelas condições sociais, isto é, pela insalubridade do ambiente de trabalho e o excesso da jornada de trabalho. E, por fim, a filosofia presente no Socialismo Utópico, com autores como Fourier, Victor Considerant, Saint Simon e Pierre Leroux. A professora ressalta a contribuição destes autores no processo de formação do planejamento urbano como forma de solução aos problemas sanitários das cidades. Fourier afirma que as cidades são o epicentro das graves dificuldades sociais, sendo uma das soluções à organização em falanstérios[1]. Contudo, o discípulo de Fourier, Victor Considerant, também contribuiu para a reflexão do higienismo nas cidades, a partir da ideia de construção de uma cidade com a eliminação dos cafés e casas de jogos, limpeza das ruas e abolição da escravidão. Entretanto, Saint Simon defende que a verdadeira higiene ou verdadeira base cristã estaria na organização científica da indústria e dos homens. O discípulo de Saint Simon, Pierre Leroux, por sua vez, defende que o socialismo consiste na não repressão das mulheres pelos homens, dos estrangeiros pelos nacionais e dos proletários pelos burgueses. Os higienistas propunham soluções mais concretas com um viés global, tal como um rascunho para a solidificação de ideais de planejamento urbano a partir de uma reestruturação total das cidades.

Considerada a primeira experiência concreta do Socialismo Romântico no Brasil, o fracasso dos falanstérios na cidade do Rio de Janeiro contrapõe-se à chegada de médicos como Benoit Mure, editor do jornal O Socialista da Província do Rio de Janeiro, assim como a construção de Casas de Saúde Homeopáticas e de um Instituto para o ensino da homeopatia. O periódico de 1845 já abordava a questão socialista como um progresso universal e o seu fim no ensino aos homens a se amarem uns aos outros. Por isso, eram abordadas questões como a demarcação de terras indígenas, a abolição da escravidão, reformas e a conservação do que era bom e o aperfeiçoamento do insuficiente.

A partir da análise de diversos periódicos, Fania Fridman conclui que, para os discípulos de Fourier, fundadores do Instituto Homeopático, a distribuição de medicamentos homeopáticos era de suma importância, já que, a homeopatia era considerada a medicina dos pobres. É o caso observado, por exemplo, no periódico A Nova Minerva, que veiculava os benefícios da homeopatia, em 1846, cujas críticas ao uso da violência no controle das epidemias eram feitas constantemente. Era criticada a ideia de que os pobres eram responsáveis pela sua condição de pobreza e falta de higiene. Muitos dos autores do periódico, inclusive, criaram Juntas de Caridade, resguardadas por um fundo municipal de impostos sobre aluguéis. O semanário A Abelha afirmava a importância da fiscalização de estabelecimentos pelas autoridades sanitárias e administrativas e, além dos processos industriais com preceitos da higiene pública, propunha a criação de uma legislação de regulação de duração do trabalho nas oficinas.

A professora encerra sua fala pontuando a importância do grupo de médicos homeopatas que propunham uma intervenção nas cidades, no sentido de amenizar os efeitos das epidemias, sem violência. Isto significaria, portanto, uma maior atuação do Poder Público.

Em seguida, o professor Carlos Henrique Ferreira Jr aborda os comentários do Segundo Barão do Lavradio, José Pereira Rego, na obra Esboço Histórico das Epidemias Que Tem Grassado na Cidade do Rio de Janeiro: Desde 1830 A 1870, no qual o autor faz um grande levantamento a partir de todas as fontes então existentes sobre as doenças que afetaram o território.

O professor Ferreira Jr. define as décadas de 1850 e 1860 como foco de sua pesquisa, as quais coincidem com a ocupação pelo barão de um cargo na Junta de Higiene e Saúde. Devido ao cargo ocupado, José Pereira Rego tinha acesso a dados para estruturação de seu estudo. Sendo assim, é apresentada uma série de comentários sobre as medidas e as propostas a respeito do sucesso e do fracasso das políticas aplicadas na época em função das crises sanitárias. A partir disso, o autor aproxima-se e afasta-se do Socialismo Utópico, especialmente em relação à condenação da escravidão que, segundo José Pereira Rego, partiria de uma visão estritamente epidemiológica, sendo degradadora da moral pública e disseminadora de doenças provenientes do continente africano. Visto isso, o Barão menciona a criação de um órgão estatal especializado em ações públicas voltadas à saúde e à política sanitária.

A partir da consolidação da ideia da importância da promoção de saúde pública e seu controle, criou-se no Rio de Janeiro um órgão capaz de levantar dados estatísticos e epidemiológicos sobre as causas mortis na cidade. Evidencia-se uma preocupação do médico em levar em conta o conhecimento acerca dos aspectos de saúde, como a causa das mortes dos indivíduos e as condições em que os mesmos viviam, configurando para o autor uma melhoria do sistema administrativo de saúde para o controle de epidemias na cidade.

Carlos Henrique Ferreira Jr. aponta sobre outro ponto interessante no texto de Rego que enfatiza a importância da criação de um hospital offshore para marinheiros, ou seja, fora da mancha urbana da cidade do Rio. A existência de um local específico para alocar os marinheiros e tripulantes em quarentena garantia à cidade uma infraestrutura que salvaguardava os navios mercantes de aportarem na cidade. Em suma, em caso de uma epidemia a bordo, haveria um espaço adequado para tratamento.

Ademais, Rego também aponta para os melhoramentos públicos da estrutura pública urbana como um dever do Estado, dialogando com as ideias dos Socialistas Românticos, como a criação de uma rede de abastecimento de água e de esgoto para melhoria no saneamento básico da cidade. Por outro lado, entende que não é papel do poder público a criação de moradias sociais.

Aposta, portanto, na criação de uma legislação a ser cumprida para a criação de casas e expansão da cidade, embora uma das principais dificuldades para o enfrentamento de epidemias na cidade do Rio de Janeiro fosse a negligência da Câmara Municipal em cumprir a legislação da Repartição de Saúde. O professor Ferreira Jr afirma que, de um modo geral, o barão do Lavradio compreendia que o papel de construção das casas e extensão das cidade, exceto água e esgoto, era de responsabilidade dos particulares e cabia ao Poder Público cobrar o cumprimento das regras pré-estabelecidas pela Repartição de Saúde e Polícia Sanitária.

Durante o debate, que ocorreu durante a live, surgiram várias perguntas por parte dos espectadores, como por exemplo: “Como agiam os distintos grupos políticos em torno das epidemias e como se desenvolviam os debates para seus enfrentamentos?”; “Se há alguma referência sobre como as instituições de polícia e justiça se posicionaram nesse período onde as pandemias abrem margem para medidas autoritárias e qual a atuação desses grupos na manutenção da ordem social?”; “Podemos dizer que prevalecia na época uma ideia de política pública também como processo disciplinador?”

Em resposta, Fridman apresenta as epidemias da Febre Amarela, considerada uma doença de ‘branco’, e do Cólera, considerado uma doença de ‘negro’. Nesse sentido, segundo Fridman, as medidas contra a Febre Amarela eram mais intensas que o Cólera, um tipo de racismo ‘abrasileirado’, pois as expectativas era a substituição de negros por brancos estrangeiros. Desta forma, Fridman conclui que esse combate contra as epidemias, na época, era muito ideológico, assim como o higienismo é ideológico, no sentido de que existem técnicas de prevenção contra o surgimento de determinadas doenças e técnicas neutras que iriam funcionar em qualquer lugar.

Ferreira Jr complementa falando sobre a existência de jornais operários, de medicina, de diversas e variadas tendências nos quais aconteciam os debates dos grupos políticos. Na época, existia um número grande de analfabetos, que recebiam uma informação mediada, existindo assim aqueles capazes de ler e de reproduzir as opiniões e outros não.

Por fim, Ferreira Jr elucida diversos pontos do texto de Rego e suas contribuições para o que se entende hoje como importante para manutenção da saúde pública. Vale refletir sobre o atual cenário político que o Brasil tem vivido, desde o negacionismo científico até a censura de dados sobre as mortes por conta da COVID-19 e como isso deve impactar diretamente no desenvolvimento de pesquisas e elaboração de políticas públicas, sobretudo saneamento básico.

Confira a live completa através do canal da Agência IPPUR, no Youtube, e assista a esta e outras lives do Ciclo de Debates.

 

 

¹Graduandas em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (IPPUR/UFRJ).

 

 

Notas:

1. Comunidades organizadas em grandes construções comunais, nas quais haveria uma concentração harmônica dos atores sociais. Dessa forma, cada um trabalharia a partir da sua vocação e paixão, ou seja, livre de produção em uma propriedade coletiva.