Gestão e financiamento do SUS e a pandemia do Covid-19: entre velhos e novos desafios
Boletim nº 24 – 11 de junho de 2020
Por Marcos Vinícius Rezende da Silva¹
Em meio a pandemia do Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) voltou a ocupar posição de destaque na cena pública nacional. Com isso, novamente evidencia-se a necessidade de que ele seja melhor compreendido tendo em vista sua importância na vida de milhões de brasileiros. Nesse sentido, o presente texto visa contribuir para a elucidação dos principais aspectos da gestão, financiamento e organização do SUS, expondo também alguns de seus principais problemas e desafios, em boa medida agravados pelo cenário pandêmico atual.
Legado das lutas de movimentos como o Movimento da Reforma Sanitária e forjado na Constituição Federal de 1988, o SUS é uma das mais importantes experiências mundiais de instituição de um sistema público e universal de saúde, o único em um país com mais de cem milhões de habitantes. É também considerado uma experiência inovadora sob a égide do federalismo cooperativo (RIBEIRO et al, 2018).
Desde que foi concebido, o SUS vem enfrentando problemas crônicos como o subfinanciamento, a fragmentação e a distribuição desigual de recursos – financeiros, humanos, tecnológicos etc. – entre os entes federados, entre outras questões. Agora, depois de passar por uma crise econômica recente e decisões que reforçaram ainda mais a trajetória de seu desmonte e precarização, o sistema se vê diante do desafio imposto pela maior pandemia já vista em mais de um século.
A Saúde é parte integrante do Sistema de Seguridade Social brasileiro e, juntamente com a Previdência Social e a Assistência Social, compõe o esforço de provisão de uma rede de proteção para todos os membros da sociedade, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
Direito fundamental dos cidadãos e dever do Estado, a provisão de serviços foi materializada na formação de um sistema público de acesso universal e igualitário, dedicado a atuar na promoção, proteção e recuperação da saúde e orientado pelas seguintes diretrizes constitucionais: descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (BRASIL, 1988).
O desafio da gestão e financiamento do SUS
A governança do SUS é uma das maiores expressões do federalismo brasileiro: sua gestão é feita de forma partilhada entre União, Estados e Municípios. Apesar de ser esse um aspecto central na gestão do sistema, o Conass (2009) aponta que, com o silêncio da Constituição sobre o tema, restou à Lei n° 8.080 de 1990 – chamada de Lei Orgânica da Saúde – especificar o papel de cada esfera federativa na direção do SUS. Entretanto, o detalhamento feito pela referida lei ainda se mostrou insuficiente. Não tendo tratado a fundo a questão das competências de cada ente, a Lei Orgânica da Saúde delegou essa função às Comissões Intergestores.
As Comissões Intergestores foram instituídas pelo artigo 14-A da Lei n° 8.080 de 1990, que as definiu como “foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Elas vieram a ser regulamentadas pelo Decreto n° 7.508, de 2011. São três os tipos de Comissões Intergestores no âmbito do SUS: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e a Comissão Intergestores Regional (CIR). A primeira é composta por gestores da esfera federal e das esferas estaduais e municipais; a segunda reúne gestores estaduais e municipais no âmbito de cada estado; e a terceira, congrega gestores estaduais e dos municípios que constituem determinada região dentro dos estados.
Além das Comissões Intergestores, foram instituídos também os Conselhos de Gestores. Estes representam os interesses dos gestores de cada esfera nas matérias relativas à saúde. Em âmbito federal, há o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e em âmbito estadual, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems). São esses conselhos que definem parte dos membros das Comissões Intergestores. A CIB tem metade de seus membros escolhidos pelo Secretário Estadual de Saúde, enquanto a outra metade é escolhida pelo Cosems. Já a CIT tem um terço de membros escolhidos pelo Ministro da Saúde, um terço pelo Conass e um terço pelo Conasems
Esse arranjo põe em evidência a condição de um sistema em constante pactuação por uma ampla rede de agentes com interesses frequentemente distintos. A disputa por recursos tem potencial de relegar a cooperação ao segundo plano, provocando ampla desarticulação entre os nós constitutivos do SUS e até mesmo o aprofundamento das desigualdades na provisão dos serviços. Isso tende a ser agravado em contextos de escassez de recursos, com o que a mediação das relações interfederativas – e também as público-privadas – se mostra ausente ou precária. Torna-se nítido, assim, o desafio da gestão compartilhada do SUS, especialmente considerando sua magnitude e complexidade.
No que se refere à estrutura de financiamento, a União concentra não só a maior capacidade financeira para operacionalizar o sistema de saúde, como também pode exercer interposições que afetam a capacidade fiscal dos entes subnacionais. Diversos dispositivos legais aprovados em âmbito federal, além da própria política macroeconômica adotada, provocam efeitos nos cofres dos estados e municípios – como apontado, dentre outros por Arretche (2010). Uma política de redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por exemplo, provocará repercussões no caixa subnacional via transferências aos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM, respectivamente), cuja composição se refere, em parte, ao total arrecadado com o IPI. Lima (2007) põe em destaque a dimensão do problema gerado por essas questões quando mostra que cerca de 80% das receitas finais dos municípios originam-se de transferências interfederativas, das quais 50% provêm da União e 30% dos Estados.
Apesar da situação adversa em termos de capacidades fiscais dos entes subnacionais, estes tem aumentado sua participação no financiamento da rede pública de saúde desde 2004, de modo que, em 2013, já eram responsáveis por 57,41% do total de recursos aplicados na área (CONASS, 2015).
A Lei Complementar n° 141 de 2012 definiu percentuais mínimos de alocação de recursos financeiros em saúde. Para a União, ficou estabelecida a necessidade de aplicar “anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, apurado nos termos desta Lei Complementar, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual” (BRASIL, 2012). Em relação aos estados e municípios, a aplicação mínima definida foi de, respectivamente, 12% e 15% dos recursos provenientes de arrecadação de impostos e transferências.
Em um contexto de crise econômica, no qual as capacidades fiscais-financeiras dos entes subnacionais tendem a ser (ainda mais) deterioradas, determinadas decisões tomadas na esfera política podem tornar ainda mais complexo o problema. Foi o que aconteceu, em 2016, com a aprovação da Emenda Constitucional n° 95, que, ainda na esteira do impacto da severa crise econômica de 2015, estabeleceu um teto para os gastos da União, provocando repercussões no financiamento público da saúde. A referida emenda estabeleceu que, nas duas décadas subsequentes ao ano de 2018, os gastos públicos estariam limitados ao montante do ano anterior, corrigido apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Com a latência dos prejuízos advindos dessa iniciativa e a emergência da pandemia do Covid-19, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) pediu, recentemente, a revogação da emenda, citando um estudo apresentado em sua Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin). O relatório mostra que o prejuízo ao SUS já chega a R$ 20 bilhões desde que a E.C. 95/2016 entrou em vigor, valor que representará cerca de R$ 400 bilhões ao longo de suas duas décadas de vigência (CNS, 2020).
Organização do SUS e infraestrutura de saúde
O SUS está territorialmente organizado na forma de regiões de saúde, definidas pelo Decreto n° 7.508 de 2011 como “espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde” (BRASIL, 2011). No caso do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foram construídas nove regiões de saúde, são elas: Baía da Ilha Grande, Baixada Litorânea, Centro-Sul, Médio Paraíba, Metropolitana I, Metropolitana II, Noroeste, Norte e Serrana.
O Decreto n° 7.508 de 2011 determina, ainda, que cada região de saúde deve ter no mínimo cinco tipos de ações e serviços, sendo eles: (1) atenção primária; (2) urgência e emergência; (3) atenção psicossocial; (4) atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e (5) vigilância em saúde.
No âmbito de cada região de saúde há uma Rede de Atenção à Saúde, definida pela Portaria nº 4.279 de 2010 do Ministério da Saúde como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” (BRASIL, 2010). Essa rede se estrutura a partir da Atenção Primária à Saúde e, segundo Oliveira (2016), possui cinco elementos fundamentais:
“centro de comunicação (Atenção Primária à Saúde); pontos de atenção (secundária e terciária); sistemas de apoio (diagnóstico e terapêutico, de assistência farmacêutica, de teleassistência e de informação em saúde); sistemas logísticos (registro eletrônico em saúde, prontuário clínico, sistemas de acesso regulado à atenção e sistemas de transporte em saúde); e sistema de governança (da rede de atenção à saúde)” (grifos do original) (OLIVEIRA, 2016).
Essa estruturação torna evidente a necessidade de diálogo e planejamento conjunto entre os municípios e destes com os governos estadual e federal, visto que os serviços e ações ofertados em seus territórios fazem parte de uma rede mais ampla, devendo levar em conta não só o atendimento aos seus munícipes, como também à população de toda a região de saúde.
A ausência de condições locais para a oferta de determinadas ações e serviços – especialmente tratamentos em determinadas especialidades médicas e de alta complexidade, por exemplo – ou mesmo a insuficiência de leitos hospitalares, pode ser atenuada com sua oferta em municípios adjacentes integrantes da mesma rede de saúde.
Essa lógica, porém, impõe a necessidade de deslocamentos intermunicipais para que os usuários possam usufruir dessas ações e serviços não prestados em seus municípios. E, dessa forma, o custo que isso gera ao usuário também deve ser levado em consideração pelos governos, mais ainda em contexto de pandemia.
O caso do leste metropolitano fluminense
Na Região Metropolitana II do Rio de Janeiro – formada pelos municípios de Itaboraí, Maricá, Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá –, segundo dados (de abril de 2020) do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), há um total de 2.623 leitos de internação hospitalar do SUS. Entretanto, não há uma relação direta entre o número de leitos de internação hospitalar do SUS em cada município e o tamanho populacional. Apesar de São Gonçalo ser o município mais populoso da região, com pouco mais de 1 milhão de habitantes (estimativa do IBGE referente a 2019), ele tem 883 desses leitos, enquanto Niterói, com cerca 500 mil habitantes (estimativa do IBGE referente a 2019), tem 978.
Niterói e São Gonçalo são os municípios com maior infraestrutura de saúde e estão, constantemente, recebendo pacientes de outros municípios. Aliás, vale destacar também que dos seis hospitais públicos especializados da Região Metropolitana II, cinco estão em Niterói, evidenciando aí uma notável concentração dos serviços ofertados no território.
Esse aspecto dá indicativos quanto aos fluxos intermunicipais para a utilização dos serviços públicos de saúde na Região Metropolitana II. E, considerando a atual restrição à circulação de pessoas imposta pela pandemia do Covid-19, sobretudo no município de Niterói, essa questão torna-se ainda mais relevante, uma vez que não se pode prejudicar as pessoas que necessitam de atendimento/tratamento nessa localidade.
O desafio enfrentado pelo SUS, atualmente, conjuga uma série de fatores estruturais – que já tornam bastante complexa a gestão do sistema – com uma conjuntura crítica provocada pela crise pandêmica. E isso, cabe lembrar, pouco tempo depois da adoção de medidas que limitam os gastos federais em saúde.
Nosso sistema de saúde, único aqui e no mundo, tem agora mais uma vez seus limites testados nessa nova luta imposta após anos de desmonte e precarização. Os resultados desse novo desafio, que provocou o colapso de sistemas de saúde de países como a Itália e a Espanha, ainda estão se desenrolando, e esperamos que ao menos tenhamos como legado um aprendizado que estimule a construção de um futuro melhor, no qual o SUS seja mais valorizado e fortalecido.
¹Graduando de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ).
Referências
RIBEIRO J. M. et al. Federalismo e políticas de saúde no Brasil: características institucionais e desigualdades regionais. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 23, no.6, 2018.
PIMENTEL, V. et al. Sistema de saúde brasileiro: gestão, institucionalidade e financiamento. BNDES Setorial, pp. 7-77, vol.46, 2017.
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CONASS – CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE. SUS 20 anos. Brasília: CONASS, 2009.
ARRETCHE, Marta. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? DADOS – Revista de Ciências Sociais, pp. 587-620. Rio de Janeiro, vol.53, no.3, 2010.
LIMA, L. D. Conexões entre o federalismo fiscal e o financiamento da política de saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, vol.12, no.2, 2007.
CONASS – CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE. A Gestão do SUS. Brasília: CONASS, 2015. Disponível em: <https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/A-GESTAO-DO-SUS.pdf> Acesso em: 20 set. 2019
BRASIL. Presidência da República. Lei complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o §3° do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Brasília, DF, 13 jan. 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm>. Acesso em: 20 set. 2019.
CNS – CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. NOTA PÚBLICA: CNS reivindica revogação imediata de emenda que retirou verba do SUS, prejudicando enfrentamento ao Coronavírus. Disponível em: <https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1064-nota-publica-cns-reivindica-revogacao-imediata-de-emenda-que-retirou-verba-do-sus-prejudicando-enfrentamento-ao-coronavirus> acesso em: 14 mai. 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 30 dez. 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html >. Acesso em: 20 set. 2019.
BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 7.508, de 20 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde – SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Brasília, DF, 28 jun. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7508.htm>. Acesso em: 20 set. 2019.
OLIVEIRA, Nerícia R. C. Redes de Atenção à Saúde: a atenção à saúde organizada em redes. São Luís: EDUFMA, 2016.