Giro a partir do território: Questões Feministas para o Planejamento Urbano

Boletim nº 79, 05 de junho de 2024

Glaucy Hellen Herdy Ferreira Gomes

Mestranda em Planejamento Urbano e Regional – PPGPUR/UFRJ

INTRODUÇÃO

Esta breve monografia foi elaborada com o objetivo de discutir temáticas levantadas no âmbito da disciplina Colonialidade do Saber Urbano, ocorrida no 2º semestre de 2023. Foram utilizadas como base teórica os textos e autoras(es) discutidos na disciplina, em conjunto a outras referências de teóricas críticas feministas de(s)coloniais e latino-americanas, para discorrer como o conceito de território vem sendo articulado nas lutas, mobilizações e teorias formuladas pelas mulheres, e como essa abordagem se difere dos estudos urbanos. 

O planejamento é uma disciplina que nasce da necessidade de controle dos Estados sob seus territórios, portanto, a sua definição do conceito de território passa pela interação entre o poder, a dominação e a violência. Nesta ciência, o território aparece em uma dimensão mais materialista e econômica, predominando as conceituações com base em suas características físicas e propriedades geográficas. Com base nas diversas formas de sobrevivência e estratégias de luta pela defesa da vida desenvolvidas pelas feministas e movimentos de mulheres latino-americanas, essa epistemologia defende a utilização diferente da categoria de território, sob uma perspectiva não-masculina, coletiva, relacional e interdependente. Dessa forma, ao defenderem o corpo como território e o território como corpo, o feminismo das mulheres latino-americanas confronta as bases teóricas dos estudos urbanos e do planejamento territorial. 

A discussão abordada neste trabalho anseia levantar questões que são pouco ou ainda não abordadas pelos estudos urbanos e territoriais, vislumbrando iniciar um debate acerca dos limites e possibilidades desta disciplina em prol de uma utopia de futuro orientada para a manutenção das condições de cuidado e na reprodução da vida, garantindo uma vida plena e sem violências para todas e todos.

O TERRITÓRIO PARA OS ESTUDOS URBANOS

A conceituação de território é múltipla em abordagens e sentidos, sendo a própria origem etimológica da palavra em latim carregada dessa multiplicidade. Território tem origem do latim no termo territorium, que se refere a uma porção de terra delimitada e sob o domínio/jurisdição de alguém ou algum grupo. Há também uma carga de origem do conceito de território ligada a outros termos do latim, como o terra-territorium que se refere à uma porção delimitada de terra na sua dimensão concreta e física, e o terreo-territor, radical ligado ao verbo aterrorizar, se referindo àquele que aterroriza, incute medo. Essa origem etimológica múltipla e ambígua entre funcionalidade e materialidade, possibilita compreender a relação estabelecida entre a delimitação física à um espaço de terra, a utilização do medo e do terror (naqueles que estão dentro ou fora da delimitação) e a construção de identidades (Haesbaert, 2004; 2009).

Em uma perspectiva histórica, as discussões e conceituações em torno do termo território remontam ao século XVIII, com teorizações de pensadores clássicos de diversos campos do conhecimento, de perspectivas materiais, funcionais e, também, espirituais. No século XIX, as discussões sobre território se atrelam mais fortemente à noção de Estado-nação, incorporando sentidos diretamente ligados à formação dos Estados europeus, tais como “apropriação”, “unidade” e, principalmente, “dominação”. A partir do século XX, o território também passa a ser uma dimensão dos estudos relativos às relações de poder e do trabalho, adquirindo novas camadas de análises e definições, demonstrando a multiescalaridade e multiplicidade de abordagens do conceito, mas principalmente a sua capacidade de sobreposição. 

O geógrafo Rogério Haesbaert (2004; 2009), argumenta que o território não é apenas um espaço físico delimitado, mas também uma construção social e política que envolve relações de poder, identidade e pertencimento. Ele destaca a importância das interações e conexões entre diferentes territórios, enfatizando que o território não é estático, mas sim fluido e em constante transformação. A proposta de território defendida por Haesbaert mescla diversas abordagens e linhas, além de se apoiar nas contribuições de autores como Robert Sacks, Marcelo de Souza e Michel Foucault, ao incluir as relações de poder mediadas pelo espaço, e incorpora o entendimento de Henri Lefebvre com sua conceituação de apropriação e dominação, entendendo que

“O território envolve sempre, ao mesmo tempo (…), uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de “controle simbólico” sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar [e político-econômico, deveríamos acrescentar]: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos” (Haesbaert, 1997, p. 42 apud Haesbaert, 2004, p. 94).

Ainda assim, no campo dos estudos urbanos e do planejamento territorial – e suas bases epistêmicas fundamentalmente anglo-saxãs – predominam as abordagens acerca do conceito de território a partir de suas características físicas e materiais, atrelando as atividades de planejamento a serviço do domínio do Estado sobre sua população e território. Tal qual como estabelece Foucault (2005 [1999]) ao dizer da transformação do caráter do Estado a partir dos séculos XVII e XVIII, os recursos para efetivação do controle e exercício de poder se expandem para além do uso da força e da violência. A manutenção da dominação passa a valer-se também da estatística, da saúde, da demografia e, sobretudo, do estabelecimento de um modo de vida racionalizado, disciplinado e regulado, desde a sexualidade aos afetos. 

DO TERRITÓRIO PARA O CORPO-TERRITÓRIO: FEMINISTAS EM DISPUTA

A filósofa e feminista italiana Sílvia Federici (2017) descreve esse processo de disciplinamento como uma reforma do corpo humano para o controle dos impulsos, permitindo regularidade e previsibilidade necessárias para o estabelecimento da relação entre trabalhador e capitalista, assim como a alienação desse corpo que se dissocia da alma e é visto a partir da sua utilidade como ferramenta de trabalho. A socióloga e feminista argentina Verônica Gago argumenta que, para efetivação deste processo, ambos os corpos (da população) e os territórios (sob domínio de um Estado) precisam ser alienados de si e de sua interrelação para que, assim, se convertam em objetos controlados, dominados, a serviço de um sistema baseado na exploração de recursos para a produção. Ambas as autoras compreendem a centralidade de ação do sistema capitalista sobre um “corpo” (humano ou de terra) visando sua especialização a partir da utilidade da sua matéria, possibilitando a apropriação para o trabalho e o mercado. 

Esse movimento de especialização da matéria – o corpo e o território – como objeto para o ritmo de trabalho capitalista se deu, no caso do corpo social humano e em termos hegemônicos, para toda a classe trabalhadora. Mas, falando em termos de hierarquização sexual, Rita Segato (2021) afirma que o peso desta nova estrutura de funcionamento social sobre mulheres e crianças foi maior, tendo em vista que a estratificação baseada no sexo permitiu aos homens trabalhadores a imposição da dominação e todo tipo de violência na esfera despolitizada e privada do lar. Desta forma, os corpos das mulheres permanecem como territórios em constante estado de dominação e exploração, sendo essa dinâmica fundamental para a constituição de papéis de gênero funcionais ao modelo capitalista. Autoras como Segato e a pensadora guianense Andaiye, enxergam as violências perpetradas nos corpos das mulheres assim como conflitos por território: as violências físicas e sexuais, o extrativismo de recursos e trabalho reprodutivo, a reprodução compulsória, o tratamento objetificante dispensados a ambos são “crimes de guerra” (Andayie, 2022, p. 324) ou “guerras de profanação” (Segato, 2022, p. 31).

O feminismo de(s)colonial latino-americano busca proteger e reconstruir elos entre corpo e natureza, continuamente desfeitos pelo avanço dos ideais da modernidade e da economia capitalista, como forma de resgatar o poder político das mulheres. Além disso, essa epistemologia trabalha – e luta – para oferecer novas abordagens sobre o território, sobretudo aquelas ligadas às bases culturais, simbólicas e políticas, em detrimento da sanha produtivista. Esta defesa parte do princípio de incompatibilidade dos atuais sistemas hegemônicos com a sobrevivência humana, o ciclo de vida da natureza e os recursos do planeta. Com base nas diversas formas de sobrevivência e estratégias lutas pela defesa da vida desenvolvidas pelas mulheres latino-americanas, a utilização da categoria de território passa por uma perspectiva não-masculina e despatriarcalizada, dizendo da experiência corporal no plural e coletivo, transbordando as experiências individuais: “o corpo como território, o território como corpo social” (Hernández e Jimenéz, 2023, p. 24).

REFLEXÕES FINAIS

Ao defenderem o corpo como território e o território como corpo, através de chaves analíticas tais como “corpo-território” ou “território-corpo-terra”, o feminismo e as mulheres latino-americanas colocam novas questões para os estudos urbanos e do planejamento territorial. Como se posicionam corpos e territórios nas análises dos estudos urbanos e territoriais? O que significam desenvolvimento territorial, integração regional e outros tantos grandes projetos de planejamento, para a vida cotidiana de comunidades inteiras e seus territórios? Quais laços e formas de vida são desmantelados a partir da introdução de ordenamentos territoriais orientados à produção de mercadorias? Como se dão os processos de expropriação de territórios do ponto de vista daqueles e daquelas que vivem e dependem deles? Quais dimensões da vida cotidiana são rompidas com a submissão de corpos e territórios ao fluxo do capital? De quais corpos e afetos são feitas as disputas territoriais – rurais ou urbanas? 

O que a epistemologia feminista de(s)colonial latino-americana propõe é uma transformação radical nas lentes analíticas: a que servem os trabalhos intelectuais, as ferramentas técnicas e recursos teóricos mobilizados por essa disciplina? Ao cuidado e reprodução da vida, ou à manutenção do modelo vigente baseado no acúmulo de capital e à produção de mercadorias? Ao buscar dar respostas para essas perguntas, os estudos urbanos e territoriais precisam confrontar suas bases teóricas ao âmago, buscando, sobretudo, aquelas que dizem respeito ao próprio objetivo de sua existência enquanto disciplina e ciência. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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