O RAP como uma produção cultural negra emancipatória e revolucionária

Boletim nº 77, 03 de abril de 2024

Por Jonathan Araújo

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional

1 – INTRODUÇÃO

O presente trabalho surge da minha inquietude enquanto cientista e artista, a fim de entender melhor as perspectivas revolucionárias de um movimento do qual faço parte, o Movimento HIP HOP. Logo, este trabalho, embora alicerçado nas bases científicas, apresenta um também caráter pessoal, e isso se dá a partir do entendimento de que não existe ciência imparcial, neutra, externa ao círculo social. Por isso inicio esta introdução em primeira pessoa do singular, e mantenho as análises na primeira do plural, pois entendo, enquanto parte do movimento, que este trabalho não é escrito única e exclusivamente por minhas mãos, ele é o esforço conjunto meu e de todos os autores apresentados.

 O trabalho surge também do fazer ciência para além do que está posto, qualificando-se, antes de mais nada, como a busca por uma revolução. Ele apresenta as referências científicas dos grandes clássicos, porém não se limita a elas e traz novas formas de saber e de representar o material e o imaterial. Flerta com saberes ancestrais, mesmo que de forma ainda superficial, uma vez que a academia mantém certa limitação para compreender tais saberes, algo normal diante do esforço infinito para absorver e desenvolver outras formas de fazer a ciência. Não devemos, porém, desconsiderar a possibilidade de a academia invisibilizar tais saberes – e eu me incluo nesse risco. É por isso que esse trabalho surge com o objetivo de mudar, mesmo que de forma mínima, esse panorama.

Para isso buscamos trabalhar com as análises das letras de Don L e Leall e com parte da bibliografia deixada por Frantz Fanon, Clovis Moura, bell hooks, Lélia Gonzales entre outros, a fim de entender não só a construção de um pensamento revolucionário e/ou emancipatório no RAP nacional, mas também seus movimentos contra hegemônicos. Com isso buscamos responder algumas questões, para assim identificar nossos objetivos.

Em que panorama o RAP surge? Essa questão busca a compreensão  de sua dinâmica de produção social e espacial e sua relação com o território, tentando entender como a diáspora africana influencia as formas como o RAP é produzido e reproduzido, no espaço e no tempo.

O que torna certas produções do RAP tecnologias de pensamento revolucionário e/ou emancipatório? Com isso buscaremos entender quais as potencialidades do RAP a partir das letras de Don L, Leall e outros artistas, visando a identificar a janela revolucionária e/ou emancipatória do estilo musical e por consequência do Movimento HIP HOP.

Dentro da produção espacial e social do Brasil, como o RAP se comporta enquanto manifestação política? Nesse ponto traremos reflexões quanto às particularidades da sociedade brasileira e sobre como a cultura do HIP HOP constrói e é construída dentro dessas especificidades.

Por fim, quais as possibilidades revolucionárias e/ou emancipatórias do RAP? Nesse ponto desenvolveremos possibilidades de panoramas emancipatórios e revolucionários, baseando-nos na materialidade, na construção teórica dos autores e dos rappers Don L e Leall. Cabe aqui ressaltar que o presente trabalho irá focar em rappers que apresentam afinidade com questões raciais e não há qualquer intenção de utilizar sua produção como universal dentro de um movimento tão diverso quanto o HIP HOP, e de um estilo musical como o RAP.

O trabalho apresenta-se a partir das potencialidades de um pensamento revolucionário/emancipatório periférico e foca em desenvolver essas reflexões com apoio em uma noção de produção descolonizadora e decolonial, em que o colonizado/marginalizado surge como protagonista, exercendo – dentro de uma narrativa – a partir de um movimento revolucionário/emancipador, sua ação transformadora.

Foram selecionados dois artistas para que pudéssemos entender a sua relação com a realidade, a produção dela e a partir dela, tanto no âmbito cultural, quanto no material e territorial. Para isso, precisamos definir os conceitos abordados aqui para evitar qualquer equívoco de compreensão.

Começaremos pelo entendimento do que é revolução. Caio Prado Júnior (1966) entende a revolução não só como tomada do poder pela força, o que corresponde ao que entendemos como insurreição, mas de forma mais ampla como transformação do regime político-social:

“No sentido em que é ordinariamente usado, “revolução” quer dizer o emprego da força e da violência para a derrubada de governo e tomada do poder por algum grupo, categoria social ou outra força qualquer na oposição. “Revolução” tem aí o sentido que mais apropriadamente caberia ao termo “insurreição”. Mas “revolução” tem também o significado de transformação do regime político-social que pode ser, e em regra tem sido historicamente desencadeada ou estimulada por insurreições. Mas que necessariamente não o é. O significado próprio se concentra na transformação, e não no processo imediato através de que se realiza. (PRADO JUNIOR, 1966)”

Já o para o conceito de emancipação iremos utilizar a abordagem utilizada por Ariela dos Santos Canielles (2009) que entende, a partir de uma visão marxista, tratar-se de um processo social que está ligado à liberdade, a fim de, a partir da luta de classes, instaurar um novo modelo social que se propõe a superar os aspectos vigentes do modelo atuante. 

No contexto marxiano, o conceito de emancipação é um processo social, que está estreitamente ligado à liberdade, à luta de classes, e à instauração de um novo modelo social que supere aspectos do modelo vigente. É preciso o cuidado para que não haja confusão teórica com outros processos individuais que visam a autodeterminação, e desenvolvimento pessoal e intelectual do ser humano. (CANIELLE, 2009, p.4)

Cabe aqui ressaltar que ambas as definições partem de um ponto de reflexão marxista e acabam por se tocar de forma superficial, uma vez que possuem similaridades podendo, em determinados contextos, uma noção ser o fim (fim aqui utilizado enquanto produto de um processo) da outra.

 

2 – RAP, HISTÓRIA E POTENCIALIDADES – emancipação revolucionária ou revolução emancipatória?

O trabalho busca entender as potencialidades do RAP, utilizando suas letras e sua relação com a cultura, território e movimentos sociais, a partir da dicotomia entre os conceitos de emancipação e revolução. Essa dicotomia, no entanto, será problematizada ao final desse trabalho, a partir da seguinte questão: a diferença entre os dois conceitos é realmente significativa, ou ambos são movimentos complementares?

Com isso devemos iniciar trazendo a história do RAP e do movimento HIP HOP, a fim de embasar melhor nosso entendimento a partir do seu contexto histórico. Nesse sentido, a pesquisa busca explorar as letras não só dos rappers que selecionamos, mas também as referências – dentro do RAP – que contribuíram para a ascensão desses artistas.

O Movimento Hip Hop surge no início da década de 1970, na cidade de Nova York, mais precisamente no bairro do Bronx, conforme afirma Teperman (2015, p.11). O Movimento que possui como fundamentos o MC, DJing, Break Dance, Graffiti, e mais recentemente o Conhecimento, aparece como uma expressão cultural de resistência em comunidades periféricas que abrigavam imigrantes jamaicanos, latinos e afro-estadunidenses, que enfrentavam diversos problemas derivados das desigualdades de classe e racial. 

“Bambaataa passou a defender a existência de um “quinto elemento” na cultura hip-hop: o conhecimento. A ideia é um contraponto à redução do rap a um produto de mercado, reforçando sua potencialidade como instrumento de transformação. Nesse sentido, é preciso considerar um aspecto crucial dessa manifestação: sua ligação com as lutas do chamado movimento negro. (TEPERMAN, 2015, p.11)”

O Movimento se mostra, a princípio, como uma construção voltada para as demandas de mudança social, principalmente em relação a população negra, trazendo como principais influências musicais e conceituais expressões afro-diaspóricas, a exemplo do Toaster,gênero musical jamarcano precursor do RAP, que foi introduzido por um dos mais importantes DJs para a cultura Hip Hop, Dj Koll Herc.

A partir desse panorama, o RAP surge como amplificador da voz de jovens vindos dos guetos, para que pudessem se expressar, expondo sua revolta e suas ideias diante das intempéries sociais causadas pelo capitalismo. Com isso o movimento Hip Hop e o RAP se tornam inicialmente tecnologias eficientes para retratar e combater as mazelas vividas nas periferias da centralidade capitalista, abordando o dia a dia e as guerras de gangues, entre outros problemas de cunho social que se apresentam nos “guetos” e bairros periféricos até os dias de hoje.

A ascensão do RAP, no contexto brasileiro, surge por volta dos anos 80, mas sua explosão de popularidade se dá a partir dos anos 90, nas periferias de São Paulo, tendo como principal expoente o grupo Racionais Mcs. A produção musical do grupo se dá a partir da realidade material vivida nas periferias paulistas, retratando desde a vida de um jovem negro criado por uma mãe solteira, até a realidade das cadeias brasileiras.

“Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro, sem rosto e coração

Ei São Paulo terra de arranha-céu

A garoa rasga a carne, é a torre de Babel

Família brasileira, dois contra o mundo

Mãe solteira de um promissor vagabundo 

Luz, câmera e ação!
Gravando, a cena vai
Um bastardo, 

Mais um filho pardo sem pai (RACIONAIS, 2002) [1]”

Aqui podemos observar já uma grande potencialidade de denúncia, em que as questões são abordadas de forma frontal, questionando o papel da sociedade, representada pela Cidade de São Paulo, e o papel que é relegado para o filho pardo de uma mãe negra solteira periférica. A questão relacionada à cor/raça fica evidente nesse trecho, e é trabalhada durante toda a música, principalmente no ponto de virada que se dá na famosa afirmação do verso “Seu filho quer ser preto, ah, que ironia!”. Se aprofundarmos um pouco a análise, podemos observar, além da raça, aspectos relacionadas ao gênero que ficam evidentes quando se questiona o papel dessa sociedade na construção de uma família composta por uma mãe negra solteira e um filho pardo, diante da repetitividade dessa imagem de mulheres solo criando seus filhos, enquanto os pais somem por inúmeros motivos.

As questões relacionadas à classe ficam também evidentes quando a música aborda noções sobre propriedade, escolaridade e exploração das periferias pela burguesia, como aparece no verso:

“Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé
Cê disse que era bom e as favela ouviu
Lá também tem whisky, Red Bull, tênis Nike e fuzil
Admito, seus carro é bonito
É, eu não sei fazer
Internet, videocassete, os carro loco
Atrasado, eu tô um pouco sim
Tô, eu acho
Só que tem que, seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão, de Carnaval a Carnaval
Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal
Problema com escola, eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto
Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, ó, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia?
Seu filho quer ser preto, há, que ironia (RACIONAIS, 2002) [2]”

O burguês, que aqui se confunde com a figura do playboy, surge como um senhor de engenho, que possui inúmeros bens, mas não aguenta “sozinho”, o que indica que tais bens não são fruto de seu trabalho, mas sim da exploração de outros corpos, encaixando sua imagem muito bem na figura de senhor de engenho. A música dos Racionais demonstra, assim, uma consciência de classe, que fica mais evidente no verso em que explicita que o “jogo” do senhor de engenho é “sujo”, entendendo por jogo sujo todas essas relações de exploração que trazem as mazelas para homens e mulheres pretos na periferia.

Cabe aqui relatar que o RAP não surge como uma ferramenta ou tecnologia emancipadora ou revolucionária logo de início. Existe toda uma construção, um debate, um flerte com e a partir de outros movimentos, como os Movimentos Negros, Movimentos Feministas Negros e Movimentos Anticapitalistas, e essa relação varia muito ao longo do tempo e da produção dos artistas e dos movimentos.

3 – REVOLUÇÃO E EMANCIPAÇÃO – O RAP pode ser os dois?

Passamos à análise de duas letras, uma de cada rapper (Don L e Leall), com apoio nas noções de revolução e emancipação. A proximidade tanto entre os conceitos, quanto entre a produção dos rappers permite o exercício de comparação aqui proposto.

O single “Lili”, de Don L, traz o que seria o rumo pós revolução, a construção de uma nova sociedade que buscará traçar um caminho mais “civilizado” – com toda a ironia que a palavra carrega diante da queda dos “civilizadores”. Nesse cenário, o homem não se coloca mais como superior diante de outro homem, e a sociedade socialista, apresentada na música, destrói os signos do poder da burguesia, não de forma física, mas sim a partir de sua ressignificação.

Tudo se inicia com um sample de Luiz Carlos Prestes, em que o ex-senador e militante comunista afirma: “São os revolucionários que vão, realmente, fazer uma revolução no Brasil e, levar o Brasil a uma sociedade nova, efetivamente livre da exploração do homem pelo homem.”

Nessa música, Don L demonstra o que seria a principal face do planejamento dentro de uma revolução e indica como, a partir da mudança estrutural, surgem as possibilidades de construção de uma sociedade organizada com um intuito diferente do acúmulo de capital. Ou seja, uma sociedade que estruture outras formas de existência, focadas no desenvolvimento social, urbano e ambiental, trazendo um equilíbrio considerado impossível dentro de uma sociedade capitalista.

“Reforma agrária agora
Nenhum negócio tóxico
Nem os nossos narcóticos
Nossas plantas medicinais
Teremos os laboratórios

Não vão nos envenenar
Foder nossa sanidade
Fundaremos parques
E celebraremos com chás psicotrópicos

Comunhão de tecnologias
O chip da China
A erva ameríndia
Kemetic Yoga africano
​E de Havana a medicina
​Vencer como um vietnamita
O inimigo genocida
E erguer de ruínas a porra de um paraíso
Como não se viu ainda

Aquela alvorada e a Lili
Cadeias serão bibliotecas
Mansões serão clubes, livre acesso
Justiça que se efetive
​Aquele alvará e a Lili
Aquele na base do fuzil
​Aquele assinado em sangue

Liberdade há de florescer
Paz é justiça, faz-se por merecer
Livre, finalmente, finalmente, iêh
Apenas se a gente de-, se a gente de-
Se a gente decidir que vai ser

Livre (DON L, 2023) [3]”

Essa reconstrução social se inspira na transição entre o modelo de produção capitalista e uma sociedade comunista, que corresponde ao estágio socialista. Nesse estágio, a burguesia é forçada à extinção como classe, mudança que somente se torna possível a partir da revolução proletária, assim como afirma Lênin (2011, p. 50) a partir das palavras de Engels: “Segundo Engels, o Estado burguês não “morre”; é “aniquilado” pelo proletariado na revolução. O que morre depois dessa revolução é o Estado proletário ou semi-Estado.”

Antes de entrarmos na discussão da letra de Leall, devemos trazer um conceito importantíssimo para o presente trabalho: o conceito de território, conforme o entendimento, que aqui adotados, de Santos e Silveira (2013, p.19) que afirmam que “Por território entende-se geralmente a extensão apropriada e usada”. Logo, o território encontra-se na esfera da apropriação, do uso e da posse. Aqui não cabe a noção de propriedade, uma vez que não há a necessidade de possuir domínio legal sobre uma área para caracterizá-la como um território próprio.

Com isso poderemos também trabalhar a noção de “lugar”, não somente a partir do conceito geográfico que generaliza a ideia de espaço, mas utilizando o conceito de lugar social, definido por Gonzales e Hasenblag (2022), que entendem que o lugar parte de um espaço social, mais precisamente o lugar social relegado ao negro a partir do racismo que surge e se mantém como herança colonial.

” ‘no Brasil não existe racismo porque o negro conhece o seu lugar’. ‘Saber o seu lugar’ é uma expressão de naturalização das posições sociais, uma hierarquia presumida que aloca indivíduos segundo os marcadores sociais de raça, classe, gênero e território.” (GONZALES; HASENBLAG, 2022, p.6)

O território é importante para entendermos essa ideia de “lugar” porque permite pensar em diversos territórios físicos e não físicos, como as periferias, a cultura negra, etc. E assim entramos na primeira faixa musical do álbum, com o nome de “Pedro Bala” [4]. Aqui o rapper traz mais uma vez a construção de uma ficção baseada na realidade material vivenciada no Brasil a partir de tal “lugar natural”, onde as opções de sobrevivência são escassas e só resta a saída a partir da criminalidade. Porém, tal construção é repleta de críticas de um pensamento interrogativo sobre tal realidade, o que dá a entender que  a construção dessa ficção é apenas um ponto de reflexão sobre a realidade material, experimentada por tantos brasileiros nas mesmas condições apresentadas nos versos.

“Eu quero arma
O sonho dela é ser mulher de Pedro Bala
O sonho dele é matar o Pedro Bala
Entre becos e vielas, Pedro Bala
Se a cadeia é meu destino, o que me resta?
Vida se paga com vida, lei da guerra
Eu sou o tiroteio, fim de festa
Entre pernas femininas, Pedro Bala (Bala)
Eu quis a morte
O perigo da minha área é cair na mancada
O desejo da minha área é uma buceta branca
A polícia aqui na área é puta mal comida
A paz aqui na área é uma senhora ingrata
A boca de fumo é plano dе vida
A miséria faz vilão aparecer no mapa
Dá meu brinquеdo de escorrer sangue na escada
Bala, bala
Enquanto a vida acontecer vai existir a droga
E quem vai morrer pra nascer o novo líder? (Bala, bala, bala)
Eu serei tão cruel quanto o mundo lá fora
Os capitães da areia [5] levam suas joias
Entre a morte, a miséria e a marra (Bradock han) (LEALL, 2018) [6]”

No início da narrativa, o personagem fala do desejo, tanto o seu, quanto o de outros personagens anônimos, porém percebe-se que o recorte da realidade se apresenta como limitado. O desejo de querer uma arma e de entrar para o crime a fim de conseguir sobreviver e realizar outros desejos. O desejo de tornar-se mulher de bandido, o que revela uma visão machista, mas que corresponde à realidade criada a partir dessa delimitação do “lugar do negro”, referido à posição da mulher negra. Ou ainda o desejo de matar o atual bandido, por diversos motivos, tal como livrar-se dele, tomar seu lugar, entre outros.

No decorrer da música, podemos observar também o território que nos é apresentado. Dentro de uma perspectiva imaginativa, observamos a favela no verso “entre becos e vielas…” e a cadeia, apresentada de forma muito mais explícita.

Pulando alguns trechos, podemos observar a leitura do autor sobre a construção da realidade retratada, a começar pelo entendimento de que “a miséria faz vilão aparecer no mapa”. Sendo assim, tal realidade construída a partir de uma perspectiva de divisão racial, estruturada a partir do racismo, que controla os corpos negros e limita seu espaço, social, geográfico e econômico, sendo o principal fator responsável por jogar corpos periféricos para a criminalidade. Isso fica ainda mais claro no trecho “eu serei tão cruel quanto o mundo lá fora”, que traz um ar de vingança, mas também mostra que tal uso da violência, ou a debandada para a vida do crime, não se constroi a partir de uma perspectiva imoral ou antiética, e sim a partir de uma realidade que, de uma maneira ou de outra, tem que ser enfrentada ou combatida por esses corpos negros, a fim de conseguirem se manter vivos.

Para finalizar a análise da música, o rapper traz mais uma vez a construção do “lugar do negro” no verso “Se esqueceram por quem que eu fui feito? Minha função é sempre ser o suspeito”. O trecho mostra uma construção social e material em que, independentemente de o indivíduo estar ou não na vida do crime, sua pele, sua geografia, seu papel sempre será o de suspeito.

4 – CONCLUSÕES PRELIMINARES

Como trata-se de um trabalho em andamento, ainda não temos uma reflexão acabada sobre o significado da emancipação dentro do pensamento dos rappers analisados. O que aparece como revolução e emancipação dentro do pensamento marxista não necessariamente vai representar o que observamos dentro das letras analisadas. Nessa linha, a pesquisa ainda vai se debruçar com profundidade sobre as conceituações de emancipação e revolução utilizadas por outros autores, de diferentes vertentes de pensamento.

Porém, mais uma vez cabe relembrar que tal estudo não possui a intenção de se apresentar como neutro, ou isento de ideologia. Os autores aqui utilizados apresentam uma perspectiva de leituras sobre emancipação e revolução que busca a mudança do status quo, não sendo tais conceitos utilizados de forma a reforçar os mecanismos de repressão ou exploração, o que seria um ato contraditório diante do que representam.

 

1 Verso do grupo Racionais MC’s na música “Negro Drama” do álbum “Estilo Cachorro”, lançado em 27 de outubro de 2002.

2 Verso do grupo Racionais MC’s na música “Negro Drama” do álbum “Estilo Cachorro”, lançado em 27 de outubro de 2002.

3 Verso do rapper Don L na música “Lili” Roteiro pra Aïnouz Vol. 2”, lançado em 7 de setembro de 2023

4 Referência ao romance “Capitães de Areia” de Jorge Amado, lançado em 1937, possuindo um dos personagens principais com o mesmo nome da música “Pedro Bala”.

5 Referência ao romance “Capitães de Areia” de Jorge Amado, lançado em 1937.

6 Verso do rapper Leall na música “Pedro Bala” do álbum “Esculpido a Machado”, lançado em 2 de março de 2021.

 

5 – REFERÊNCIAS

CANIELLES, A, S. O conceito de emancipação: uma breve apresentação. In: XI Encontro de Pós-Graduação UFPel, 2009, Pelotas. XVIII Congresso de iniciação Cientifica, XI Encontro de Pós-Graduação e I Mostra Cientifica.  Pelotas: Editora Universitária / UFPEL, 2009. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2009.

DON L. Lili. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=YfT9vNULm60&ab_channel=DonLMusic. Acesso em: 02 de abril de 2024 

GONZALES, Lélia. O Movimento negro na última década. In: GONZALES, Lélia; HASENBLAG, Carlos. Lugar de Negro. Edição do Kindle. Rio de Janeiro, RJ: Editora Schwarcz S.A, 2022. Capitulo 1 p.10-62

JUNIOR, Caio Prado; FERNANDES, Florestan; Clássicos sobre a revolução brasileira. 4ª edição. São Paulo: Editora Expressão Popular. 2005. 160 p.

LEALL. Pedro Bala. In: LEALL. Esculpido a Machado. Rio de Janeiro: Covil da Bruxa, 2021. Álbum. Faixa 2.

LÊNIN, Vladimir Ilich Ulianov. O Estado e a Revolução, Edição do Kindle, 2011. 108 p.

RACIONAIS MCS. Negro Drama In: RACIONAIS MCS. Nada com um Dia Após o Outro Dia. São Paulo: Boogie Naipe, 2002. Álbum. Faixa 5

SANTOS, Milton. SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 17ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2013, 476 p.

TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som – as transformações do rap no Brasil. Edição do Kindle. São Paulo: Claro Enigma, 2015. 177 p.