Quem são os coringas contemporâneos da Gotham City brasileira?
Boletim nº 30 – 22 de julho de 2020
Por Pollyanna de Souza Carvalho¹
Desde o final de fevereiro do corrente ano, o país experimenta um novo momento em seu processo de desenvolvimento social e econômico, com o Sars-CoV-2, um vírus altamente letal para todas as camadas da população. Sem dúvida, apesar de conter um saldo de propagação para todas as classes sociais, esse vírus passou a atingir os grupos mais vulneráveis e com vários tipos de precarização nos seus itinerários. Tais processos de precarização se aprofundaram, mas já eram vividos em sua totalidade, por causa da ausência de respostas do poder público em relação à capilaridade dos serviços, políticas e programas sociais, que viabilizam melhores condições de existência, produção e reprodução da classe trabalhadora.
O que se presencia, além de um Estado mínimo no campo dos direitos, é a intensificação de práticas baseadas no autoritarismo, na repressão dos grupos subalternos, na criminalização da pobreza, na ampliação da desigualdade e no fosso entre a sociedade civil e o poder público. Este último é, cada vez mais, alicerçado nos interesses do mercado, dos agentes rentistas, da classe burguesa e de sua aliança com os princípios outorgados pelo neoliberalismo. A relação entre a sociedade civil e o Estado tem sido de bastante descontentamento, sobretudo dos grupos de esquerda, com a atuação do (des)governo atual. Certamente, o que se legitimava no discurso de “Jair se acostumando com a vitória do presidente”, logrou a replicação de tendências antigas da formação sócio-histórica brasileira de mercantilizar e privatizar todos os serviços e direitos, além de exterminar a vida de diversas frações da população, a título de salvaguardar os lucros e exploração da mais-valia dos trabalhadores, até mesmo no caso do trabalho em home office.
A sociedade civil enfrenta desafios delicados, em tempos de pandemia, na área da saúde. Esta área, que foi representada desde janeiro do ano de 2019 pelo médico Luiz Mandetta, passa por opiniões divergentes entre o corpo político. Mandetta, de alguma forma, seguindo os princípios da Organização Mundial da Saúde, contrariou a defesa de Bolsonaro e se colocou a favor do isolamento. Todavia, o mesmo ministro foi demitido e em seu lugar entrou o médico Nelson Teich, em abril, que pediu demissão, posteriormente, em virtude de uma também oposição às atitudes defendidas de Bolsonaro sobre o isolamento e uso da cloroquina.
Outra área de grande importância é da educação, que continha o economista Abraham Weintraub. Tal representante teve a decisão quando estava prestes a sair de remover cotas para as pessoas negras, indígenas e pessoas com deficiência dos programas de pós-graduação do país, o que felizmente, nos dias atuais, não se materializou. Outro fato, foi a breve passagem do economista Carlos Decotelli que protagonizou, apesar de pensar que as cotas são importantes para a igualdade, escândalos sobre a constituição de seu currículo. Isto porque surgiram informações a respeito de plágio em sua Dissertação de Mestrado na Fundação Getúlio Vargas e falta de aprovação em sua Defesa de Tese de Doutorado na Universidade Nacional de Rosário, na Argentina. Decotelli admitiu, no entanto, que apenas concluiu os créditos do Doutorado, não obtendo o título de Doutor.
A partir disso, emergem inquietações: a) como ficarão os alunos que vão realizar o Exame Nacional do Ensino Médio, compreendendo-se a iniquidade de provas à distância?; b) quais investimentos nas Universidades, Centros de Pesquisa e Unidades de Ensino vão aparecer para o estudo do COVID-19 e para a educação (ensino, pesquisa e extensão)?; c) como estão sendo tecidas as interlocuções com as Universidades e Institutos sobre o ensino remoto, considerando a precarização do ensino à distância e as intenções de desconstrução do ensino superior de qualidade?; d) quais medidas serão tomadas para a universalização do acesso à educação e inclusão de todos os discentes, e preservação da vida de docentes e técnicos administrativos? Enfim, integram-se diversas questões para debate, especialmente com a inserção do novo ministro e pastor Milton Ribeiro.
Em suma, a correlação de forças e oposições no corpo político brasileiro, contando com a saída de Moro do Ministério da Justiça e posse de Mendonça, deixa toda a sociedade civil preocupada com o rumo dos próximos detalhes de um filme composto, majoritariamente, de representantes ancorados na extrema direita, no neoconservadorismo e nas políticas de austeridade fiscal, a fim da financeirização da economia e sua desregulamentação, com flexibilização dos direitos.
Assim, tendo como base o cenário atual, investiga-se: quem são os Coringas atuais do Gotham City brasileiro? O filme “Coringa”[1] (Joker em inglês), de 2019, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, é um pano de fundo instigante para a compreensão do âmbito social, econômico, político e sanitário do Brasil. A Gotham City ou cidade Gótica, na visão de Vieira (2011, p. 95), em que se passou a vida de outro personagem, o Batman, evidencia o caos, o pessimismo, a sombra das grandes sociedades. Mais adiante, a pensadora aborda que as cidades[2] imaginárias são refletidas por meio das cidades reais. Sempre existiram as variadas representações do espaço urbano, no quesito crítico ou utópico. Neste sentido, “cidades caóticas, odiadas, sonhadas ou poéticas são representações que cabem e couberam a muitas cidades ao longo da história” (VIEIRA, 2011, p. 98).
O filme conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), filho da mãe Penny Fleck (Frances Conroy), um homem que foi adotado[3] enquanto criança, sendo diversas vezes violentado fisicamente pelo namorado da mãe, que agredia, de forma doméstica, a ambos. A mãe, portadora de diversos problemas mentais, foi presa neste período por colocar a vida do filho em perigo, visto que ele passou por desnutrição e traumas na cabeça e no corpo. Arthur é um personagem que sofre com problemas neurológicos, chegando a tomar 7[4] diferentes medicações, e que possui uma risada única e incontrolável. Foi, em virtude dessa risada autêntica, que eclodiu um movimento popular contra o governo intitulado de fascista em Gotham City, onde permeava-se a ganância, violência, mortes e canalização de recursos para a classe burguesa. A risada do protagonista chamou a atenção de três homens que foram assassinados posteriormente, estes acharam deboche da parte de Arthur e começaram a agredi-lo. Esta violência[5], para Arthur, não era incomum no seu cotidiano de preconceitos e humilhações, devido ao bullying sofrido e o estranhamento de variadas pessoas de que suas atitudes descontraídas eram perigosas à sociedade.
Apesar do desejo de Arthur em ser comediante, ele era um palhaço sem alegria e, no início da história, nota-se uma lágrima escorrendo de seu rosto. Ele dizia: “só espero que minha morte faça mais centavos que minha vida” e se indagava: “é impressão minha, ou o mundo está ficando mais doido?”. Quando Arthur foi demitido sem nenhum tipo de escuta qualificada do empregador porque portava uma arma[6] no seu horário de trabalho, mais ainda, após a descoberta de sua adoção, o mundo se tornou mais sem sentido, chegando ele a dizer no programado Murrayque não tinha mais nada a perder. Neste ínterim, ele havia parado de fazer o tratamento psiquiátrico ante remédios, em um departamento de saúde, por falta de verbas públicas. Então, a personalidade pode ter sido alterada também por causa da ausência de tratamento e efeitos colaterais das medicações tomadas anteriormente.
Arthur cometeu assassinatos em vários momentos, mas há um camarim aviltante por detrás disso. O Coringa: de abandonado, adotado, violentado, de filho cuidadoso, trabalhador e amigo, passou a ser vilão instantaneamente, copiado via máscaras pelas revoltas populares contra o governo, mas foi um cidadão usurpado de seus direitos sociais durante sua vida. Reitera-se: ele foi extorquido de seus direitos de cidadania em uma cidade sem leis democráticas e efetivas. Eis o eixo central que os Coringas da Gotham City brasileira passam.
Diante de todos processos mencionados, o filme apresenta um realidade cruel que se reproduz no Brasil, como em várias partes do mundo. Gotham City banhava-se pela quantidade de lixo, mau cheiro, violência urbana e institucional, falta de infraestrutura das casas, insegurança e disseminação das “classes perigosas”. O Brasil é um país cheio de dívidas sociais com os seus habitantes que chegam a ser mais de 211.753.571 (IBGE, 2020)[7], são muitos deles que passam por problemas de saneamento básico, baixa infraestrutura, fome, problemas na mobilidade urbana, transporte, saúde, educação, segurança pública, entre outros fatores urbanos e até mesmo rurais. A maior parte das pessoas que sofre com tudo isso são as periféricas, as que residem nas favelas, as empobrecidas, as informais e desempregadas, as diaristas e domésticas, as sem proteção do poder público via programas sociais, contabilizando as populações tradicionais que ainda perpassam por carência de atendimento institucional.
Os Coringas da Gotham City brasileira têm corpos, faces, cores, classes, dores, saberes, culturas. São os Coringas que a pós-modernidade não abraçou qualitativamente a partir de uma rede integrada de proteção social e de legislações democráticas capazes de garantir, na cidade capitalista e segregada, dignidade e competência para salvar vidas. A cada dia que passa o povo brasileiro possui a bandeira nacional cortada violentamente por representantes públicos patrimonialistas e opostos à cidadania. Não é, portanto, correto dizer que os Coringas brasileiros são vilões como é o caso do Coringa original. É afirmar que a bandeira do país sangra diariamente por meio das mortes dos grupos subalternos, negros[8], moradores em situação de rua, crianças mortas pelos policiais, mulheres que sofrem feminicídio, população LGBT, pessoas com deficiência, pessoas que utilizam substâncias psicoativas, idosos que são violados e tendo a vida ceifada, enfim, são muitas pessoas mortas, seja pelo ódio incutido nesta sociedade através dos discursos neoconservadores, ou seja pela ocorrência frequente de mortes sem explicações públicas coerentes, como o caso de Marielle[9] e Anderson (2018) e do carro fuzilado de Evaldo e sua família no RJ (2019). A interpretação de Almeida (2019) complementa a ocasião que os jovens negros, empobrecidos, residentes de comunidades e minorias sexuais, como não serão incluídos ao mercado, seja na modalidade de consumidores ou ainda como trabalhadores, terão suas vidas ceifadas por fome, epidemias ou pela subtração física realizada direta ou indiretamente pelo Estado, e como parte disso há o desmonte dos direitos sociais.
Sobre estes pontos: quantos mais como Ágatha, João Pedro, Enzo, Miguel, vão morrer sem a real atenção do poder público e dos órgãos governamentais? Quantas vidas serão descartadas e esquecidas ao longo do tempo, sem que haja justiça? Aponta Almeida (2019) que o racismo consente a conformação das almas, somando-se as mais abastadas da sociedade, à intensa violência a que muitos segmentos são submetidos, que se normalize a morte infantil por “balas perdidas”, ainda que “se conviva com áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que se exterminem milhares de jovens negros por ano, algo denunciado há tempos pelo movimento negro como genocídio” (n.p). Contribui Passos (2020, p. 91) na afirmativa de que a marca étnico-racial molda a reprodução e condição de existência dos sujeitos no Brasil. Ao se refletir sobre a sobrevivência, percebe-se que uma fração da população negra (pretos e pardos) é morta no dia a dia.
Não há como dimensionar a dor dos familiares, dos profissionais, dos movimentos sociais, ativistas, amigos, ao ver entes morrerem por causa de uma política nefasta, de encarceramento, de punitivismo, de extermínio, que estar-se-á vendo profundamente com o contexto de COVID-19, especialmente. Como Gotham City, o Brasil está sem leis sociais efetivas e o representante eleito, mesmo estando infectado, manifesta que o vírus é como a chuva e pode atingir os cidadãos. Se agudiza aos impasses, segundo Almeida (2019), na medida em que o estado de sítio, longe de ser exceção, será a norma, e o inimigo, o qual precisa ser descartado, será produzido não somente pelas políticas estatais vinculadas à área de segurança pública, mas pelos meios de comunicação de massa e os programas transmitidos por meio da televisão. Estes canais de programas atuarão como forma de criar a subjetividade adaptada ao clima da necropolítica, em que lidera o medo.
Ademais, um segmento da população que está sendo profundamente atingido são os profissionais atuantes na linha de frente contra a doença e outros profissionais de diversos campos. Não é somente na cidade do Arthur que se presencia a sociedade do consumo, descaso com os trabalhadores, demissões em massa, cortes e diminuição de salários e falta de importância com a vida do trabalhador e das minorias. Acontece o mesmo no Brasil, ainda mais com o arrocho de verbas públicas para todas instituições e equipamentos de saúde.
Posto isso, lembrança de uma passagem do filme é a parte que Arthur fica sabendo sobre o término de seu tratamento, por ausência de implementação de verbas à política de saúde mental. Para a assistente social do filme: “A tensão tá grande, a situação tá difícil. O povo sente desconforto, tá lutando procurando emprego. São tempos difíceis”. Ela acrescenta ainda que o governo não se importava para pessoas como ela, trabalhadora social, e para pessoas como ele, na abordagem: “Tenho uma má notícia para você. Cortaram a nossa verba. Vamos fechar o escritório semana que vem. A prefeitura cortou a verba em todas as áreas e o serviço social é só uma parte. Essa é a última vez que a gente se encontra”.
Decerto que a fundamentação sobre o declínio dos direitos sociais desde 1970, nos países centrais, especialmente os da Europa, se norteia após a crise estrutural do capital em busca de retomar à sua valorização, diante da quebra do pacto fordista-keynesiano e do Welfare State (1945-1975), acompanhado pela crise do Petróleo e avanço do neoliberalismo.
Também, os cortes sociais não se ausentaram no Brasil, um país de capitalismo periférico, já que no curso de 1990 via-se o rumo tomado pelos representantes neoliberais na aderência do acordo econômico proposto pelo Consenso de Washington (1989). Este processo interferiu de forma incisiva na vida da classe trabalhadora, quando analisa-se a reestruturação produtiva, as privatizações e mercantilizações, a pilhagem da Constituição Federal (1988) e dos direitos conquistados, e o caso das contrarreformas[10]. Não cabe salientar que o Estado é mínimo para o capital, já que ele se coloca apenas assim no âmbito social para não prover políticas nem serviços, mas para o capital internacionalizado e rentista, o Estado é um parceiro, quanto mais em relação ao fundo público.
Enfatiza Almeida (2019) que a atribuição do Estado no capitalismo é de muita importância: a manutenção da ordem – defesa da liberdade e da igualdade formais e garantia da propriedade privada e capilaridade dos contratos -, além da internalização dos vários antagonismos, pelas lentes da coação física e da constituição de discursos ideológicos que fundamentam a dominação.
Barbosa e Teixeira (2020, p. 67-68) ao reforçarem que a urbanização da sociedade brasileira é um fruto desigual e combinado da terrível expropriação do trabalho pelo capital, rememoram sobre a Emenda Constitucional 95, conhecida como “EC da Morte”, a qual acarretou o congelamento de investimentos públicos, integrando os da área da saúde, significando um dano de 20 bilhões nos últimos dois anos. Neste sentido, a diminuição sistêmica de recursos responde pelas limitações contemporâneas e da rápida exaustão ante à pandemia do COVID-19, expandindo a vulnerabilidade social e territorial na sua forma mais cruel.
Nesta direção, Passos (2020, p. 92) ressalta que o contexto pandêmico está demandando respostas rápidas não somente para a prevenção, ou tratamento e cura, porém, tem necessitado de uma maior visibilidade para os segmentos mais pobres que estão desocupados e ainda informais no mercado de trabalho. Tais sujeitos acessam o SUS e presenciam as consequências da Emenda Constitucional 95/2016, que congelou por 20 anos os investimentos no ramo da saúde e da educação. Os efeitos deste processo estão incidindo diretamente nas camadas mais empobrecidas que acessam as políticas sociais e já passavam pelo sucateamento no quadro da saúde pública do país.
Quando compreende-se que o Estado se omite e se ausenta de seu dever social para com a população, como a mesma pode defender os seus interesses e direitos? Uma palavra de ordem é a resistência. Como ocorreu em Gotham City, quando milhares de cidadãos, com máscaras de Coringa, começaram a cobrar por melhores condições de existência, uma vez que foram chamados de “palhaços” pelo candidato à prefeitura Wayne; no Brasil, a contestação popular também toma partido. No corrente ano, foram diversas formas de denúncia dos trabalhadores contra o governo autoritário e ao desmonte dos direitos sociais, ante panelaços e manifestações em oposição à Bolsonaro. Válido proferir, como foi dito que esse contexto de violação aparece em outros lugares, nos EUA ocorreram mobilizações sob o lema “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), principalmente ao ver a morte do cidadão negro George Floyd por um policial que escutou a sua última frase: “I can’t breathe” (Não consigo respirar).
Como não respirar fundo em face de um conjunto de extorsões à todas Gotham Cities que passam por momentos pungentes de autoritarismo e violação institucional? No Brasil, os estudantes já foram chamados de “idiotas” e “massa de manobra”, pelo próprio chefe de governo. Um presidente que reedita traços conservadores pode aguardar que ele produzirá, na visão marxiana, os próprios protagonistas que irão confrontar com a exploração de classe. São as lutas e resistência dos trabalhadores que tonificam esse cenário caótico, de esperança e de um novo horizonte como caminho democrático. Os “de baixo” têm possibilidade de atuar politicamente e com organização de cultura, via sindicatos, organizações, coletivos, movimentos sociais, Universidades, instituições democráticas, através da consciência de “classe para si” e contra a dominação do sistema capitalista. Por isso, a necessidade de saber quem são os vilões reais da história brasileira, uma vez que as máscaras já caíram e estão visíveis para todos, basta ter consciência crítica e ruptura com a alienação. Conforme Almeida (2019) é através do Estado que a categorização de pessoas e a repartição dos sujeitos em classes e grupos é desenvolvida. Como desdobramento, a ação de grupos, dentre a maior parte de suas requisições – por mais definidas que sejam -, é direcionada ao poder do Estado na modalidade da “luta por direitos”, como a dimensão da igualdade, liberdade, educação, habitação, emprego, cultura, entre outras.
Nessa ótica, Fernandes (2020, 97-98) afirma que o Brasil está interpelado por embates políticos entre a negação do dever do Estado em assegurar e defender direitos sociais conquistados, e a expansão de posturas antidemocráticas. No entanto, necessita-se desmascarar ações, principalmente elencadas pelo poder público, que se estabelecem de forma emergencial somente como manifestação do imutável medo das classes perigosas, “sem qualquer compromisso a médio e longo prazos para rever as bases do pacto entre Estado, sociedade e mercado, responsável pelo aprofundamento da pobreza, de um lado, e da concentração de riqueza, de outro” (FERNANDES, 2020, p. 100-101).
Face ao debate, é possível pontuar a resistência dos intelectuais, pesquisadores, estudantes, movimentos sociais, ativistas e demais segmentos sociais, para a democratização da sociedade, ainda mais no quadro de barbárie atual. Como potencializar lutas coletivas por direitos tão ameaçados pela lógica neoliberal? Como dar andamento as representatividades políticas, negras, feministas, periféricas, urbanas, ambientais, entre outras, na ausência de espaços públicos e de agendas rumo à cidadania? Eis os enfrentamentos no campo da justiça e cidadania para a classe trabalhadora, que presencia múltiplas violações no seu itinerário de existência.
Por fim vale dizer que, como Arthur, o qual passava por um misto de sentimentos e decepções ao longo da vida, os seres humanos são portadores de subjetividades, contendo um conjunto de significados, comportamentos, memórias e valores ao longo da história. Dessa forma, os eventos que acontecem no meio social, econômico, cultural, podem induzir à alteração desses fatores, ocasionando a despersonalização dos sujeitos e nova constituição de sentimentos perante o mundo. Com o atual governo, sobretudo, se observa a falta de respeito pelas singularidades e culturas dos indivíduos, e intensificação de uma forma neoliberal de enxergar o outro que não se ampara na solidariedade e união. Por isso, os cuidados devem ser tomados para não entrar na retórica de que o perigo é o outro e não o sistema que pune, violentamente, os seus habitantes.
¹Bacharel em Serviço Social pela UFF de Campos dos Goytacazes/RJ. Mestranda em Serviço Social (ESS/UFRJ). Pesquisadora do NUFSTEV/UFF (Núcleo em Famílias, Sujeitos Coletivos e Territórios Vulneráveis).
E-mail: pollyannacecf@gmail.com
Notas
1. Disponível em: https://topflix.tv/filmes/assistir-online-coringa/. Acesso em: 12 jul. 2020.
2. O pensamento da autora sobre a cidade é de que ela é fruto de ações humanas coletivas que integram um conjunto tanto ligado à estruturas físicas quanto em termos de sociabilidades. Ademais, as cidades são um retrato das ações sociais e das mudanças que seus moradores atribuem-nas em cada período e no espaço (VIEIRA, 2011, p. 96).
3. Existem algumas interpretações lançadas no filme se Arthur realmente é adotado, ou filho de Penny com o candidato à prefeitura de Gotham City chamado Thomas Wayne. Durante as cenas, Arthur visualiza uma foto da mãe escrito no seu lado oposto: “Amo o seu sorriso…” assinado por T.W.
4. Quando a pessoa ingere essa quantidade de medicações pode ser considerado uma polifarmácia, necessitando de muitos cuidados de saúde e com profissionais, já que os efeitos colaterais quando não administrados se tornam obstáculos para a qualidade de vida do paciente. Arthur já demonstrava depressão e, com o andamento do filme, viu-se a raiva, irritabilidade, distorção da realidade e confusão mental.
5. No início do filme, um grupo de adolescentes agride fisicamente o Arthur. Será que se existissem políticas e programas sociais de qualidade para o público infanto-juvenil, esses adolescentes, independentemente de renda, estariam às ruas reproduzindo a violência como se fosse algo natural?
6. Foi entregue por um colega de trabalho.
7. IBGE. [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. População do Brasil. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps//populacao/projecao/. Acesso em: 08 jul. 2020.
8. Almeida (2019) expressa que o racismo – que se concretiza como discriminação racial – é determinado por seu componente sistêmico. Não é, logo, somente um ato discriminatório ou mesmo de uma série de atos, porém, de um processo em que situações de subalternidade e de privilégio que se repartem entre segmentos raciais se recriam nos campos da política, da economia e das relações sociais. O autor explica que o racismo é proveniente das heranças deixadas pela escravidão e pelo colonialismo. De acordo com isso, as sociedades atuais, mesmo após o término definitivo dos regimes baseados na escravidão, continuariam presas a modelos mentais e institucionais escravocratas, ou seja, racistas, autoritários e até mesmo com formas violentas.
9. Por que a representatividade feminina e negra afeta os segmentos políticos e neoconservadores? Por que a representatividade do morador de periferia é vista como perigosa pelos agentes imobiliários e poder público? As ações coletivas e representatividades, de certo modo, provocam um sentimento de ataque e rebeldia ao sistema capitalista e ao status-quo imperante. São nestas ações que se conservam o antagonismo à violação de direitos e expropriação de alguns grupos da política, são elas que preservam e lutam por políticas públicas e, que são, por outro lado, frequentemente desqualificadas e criminalizadas por diversos tipos de agentes privados e públicos do Brasil.
10. Sobre essa questão, consultar: BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
Referências
ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019
BARBOSA, J. L.; TEIXEIRA, L. Territórios populares entre as desigualdades profundas e o direito à vida. In: CARLOS, A. F. A. (coord.). COVID-19 e a crise urbana. São Paulo: FFLCH/USP, 2020. p. 67-77.
FERNANDES, L. L. Considerações preliminares sobre a visibilidade das favelas no contexto da pandemia do COVID-19 no Rio de Janeiro. In: MOREIRA, E. et al. (orgs.). Em tempos de pandemia: propostas para defesa da vida e de direitos sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Serviço Social, 2020. p. 97-102.
PASSOS, R. G. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”: saúde da população negra em tempos de COVID-19. In: MOREIRA, E. et al. (orgs.). Em tempos de pandemia: propostas para defesa da vida e de direitos sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Serviço Social, 2020. p. 90-96.
VIEIRA, M. C. Imagem de cidade e representação urbana: Gotham City e Metrópolis em finais da década de 1930. INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, n. especial 02, p. 94-107, 2011.