Representatividade da cultura negra na escola – currículo em disputa: há espaço para percepções religiosas?

Boletim nº 21 – 21 de maio de 2020

 

Por Glauber Henrique C. Rocha¹

 

Em 13 de maio de 2020, celebram-se os 132 anos de assinatura da lei Áurea pela princesa Isabel que, na época, exercia a Regência do Império do Brasil. Dentre as críticas a essa data existe a que destaca a perspectiva de que os negros foram alvo de uma ação generosa dos detentores do poder, ou seja, a elite branca a qual projetou a filha do Imperador Dom Pedro II como referencial de libertação. Porém essa estrutura invisibiliza a resistência e combatividade dos escravizados que lutaram contra a escravidão.

Dentre os vários desdobramentos da lei Áurea, não identificamos o direito à escola e à educação para os integrantes da população negra. Logo, a análise da história dos negros no Brasil indica que a abolição da escravatura não livrou os ex-escravizados e/ou afro-brasileiros da exclusão social e da discriminação social. Ou seja, a ausência de garantias a direitos básicos fomentou a determinação “do destino social e econômico, político e cultural dos afro-brasileiros.”[1]

Não apenas o cidadão de cor foi excluído do direito à educação e à escola, também a cultura dos afro-brasileiros não foi considerada como digna de ser inserida como conhecimento a ser ensinado no âmbito escolar. Esse contexto, ao longo da história, resultou em pressões antirracistas e legítimas dos movimentos sociais negros em vários estados e municípios brasileiros, resultando no reconhecimento da necessidade de reformular as normas estaduais e municipais que regulam o sistema de ensino.

As pressões dos movimentos negros e suas articulações com políticos mais sensíveis à questão racial brasileira resultaram na inclusão, por meio de leis, de disciplinas sobre a História dos Negros no Brasil e a História do Continente Africano nos ensinos fundamental e médio das redes estaduais e municipais de ensino, a saber[2]: Constituição do Estado da Bahia (1989); Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte (1990); Lei nº 6.889, do município de Porto Alegre – RS (1991); Lei nº 7.685, do município de Belém – PA (1994); Lei nº 2.221, do município de Aracaju – SE (1994); Lei nº 2.251, do município de Aracaju – SE (1995); Lei nº 11.973, do município de São Paulo – SP (1996); Lei nº 2.639, do município de Teresina – PI (1998) e Lei nº 1.187, de Brasília – DF (1996).

Por fim, no início do ano de 2003, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639[3] que alterou a Lei nº 9.394/96 (LDB). Aquela resulta do reconhecimento da importância das lutas antirracistas dos movimentos sociais negros e também das injustiças e discriminações raciais contra negros e negras no Brasil. A legislação de 2003 contribui para a construção de um ensino democrático que incorpore a história e a dignidade de todos os povos que participaram da construção nacional, ou seja, busca-se reparação, reconhecimento e valorização. Estes princípios caracterizam as orientações expressas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

A Lei 10.639/03 tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. Sendo assim, é uma prescrição sobre a seleção de conteúdos que compõem o currículo escolar. Essa é, sem dúvida, uma grande conquista, mas que não resolve todos os problemas. Ainda existe resistência/disputa acerca da aplicação dos conteúdos destacados na lei. Esse contexto demonstra a análise do currículo como campo e objeto de disputas, tanto no âmbito das legislações quanto no das práticas efetivas, incluindo o cotidiano escolar.

 

DISPUTA PELO CURRÍCULO – PERCEPÇÕES RELIGIOSAS ACERCA DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

A obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira vincula-se aos valores civilizatórios Afro-Brasileiros[4], dentre os quais está a religiosidade. Existe uma disputa acerca da percepção de cultura afro-brasileira no mundo da educação e nas práticas e legislações que constituem os currículos que tem a religião como filtro. Destacamos, assim, os seguintes atores: os movimentos sociais negros (e sua aproximação com lideranças de religiões de Matriz Africana) e os políticos evangélicos que integram a Frente Parlamentar Evangélica. Ambos posicionam-se como representantes legítimos de um embate que se expressa em ações que buscam ampliar a representatividade de suas percepções. É fato que existe maior expressão dos valores cristãos, mas identificamos a proposta de ampliação de visibilidade acerca da religiosidade afro-brasileira na escola[5] e nos documentos oficiais.

Podemos identificar a abordagem da questão religiosa de forma pontual nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana[6] que destaca conteúdos relacionados às irmandades negras e à história da ancestralidade e religiosidade africana. Outro exemplo que viabiliza ampliação dos valores religiosos Afro-Brasileiros no contexto escolar é o material publicado pela SECAD (2006) intitulado “Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais”. Este último destaca a relevância da africanidade no processo de construção da identidade cultural afro-brasileira. Segundo Bakke (2011)[7] os elementos religiosos aparecem para representar valores “das tradições coletivas do continente africano nos quais se constrói a africanidade”, a saber, “circularidade, corporalidade, oralidade e ancestralidade.”.

A resistência acerca da representatividade da cultura negra no currículo escolar aparece, de maneira mais pronunciada, na ação de políticos que integram vertentes fundamentalistas de algumas denominações evangélicas. O fundamentalismo é um dos pontos de maior destaque no processo de crescimento[8] do protestantismo no Brasil, mas também é um aniquilador da visão social e política da igreja evangélica no cenário nacional. A voz desses atores ganha volume através da Frente Parlamentar Evangélica que tem sua origem no ano de 1986 e caracteriza-se por seus principais integrantes serem oriundos de contextos Pentecostais e Neopentecostais, marcados por estruturas e discursos que não são questionados. Trata-se de uma relação, aproximando-se de Pierre Bourdieu, entre campo (religioso) e habitus. A ascensão dos evangélicos no cenário político nacional resulta de um projeto/programa de ampliação de acesso ao poder que viabiliza a oposição às conquistas alcançadas pelos movimentos negros sociais que também utilizaram-se de vínculos políticos para divulgar seus objetivos.

A aproximação da Frente Parlamentar Evangélica com o contexto educacional brasileiro tem diversas facetas, dentre elas  o vínculo e a propagação dos projetos de lei inspirados no Movimento Escola Sem Partido. Este último publicou em uma de suas redes sociais[9] a inquietação acerca da aplicação do conteúdo da Lei 10.639/03 viabilizar um conflito com o princípio constitucional da laicidade e macular a liberdade de consciência e de crença dos estudantes. Logo abaixo do texto citado existe a recomendação de leitura de um artigo[10] que denuncia a existência de “…um olhar catequista que sugere o retorno às origens simbólicas e culturais africanas…” expressa nos livros selecionados pelo MEC para o triênio 2016/2018 que se aprofundam sobre o Candomblé e a Umbanda.

O autor do artigo citado acima participou da comissão especial[11] que analisou o Projeto de Lei 7180/2014 que divulga as propostas basilares do Movimento Escola Sem Partido, sobre o conteúdo relacionado à cultura Afro-Brasileira e destacou “É um ensino que não leva em consideração a multiplicidade étnica do continente africano e nem a multiplicidade cultural do próprio negro brasileiro. É um ensino que se dedica prioritariamente ao candomblé e à umbanda.”. Ainda em sua fala na comissão especial houve o destaque de que o problema não é o fato dessas religiões estarem sendo ensinadas, mas o pretexto de serem elemento cultural.

No site do Movimento Escola Sem Partido é possível acessar um texto no qual identifica-se a inquietação quanto a diminuição dos símbolos e valores cristãos nos livros selecionados pelo MEC e a ampliação dada “…aos aspectos doutrinários e práticos da religiosidade de matriz africana, a bruxaria, esoterismo, além da mitologia, emprestando-lhes status de manifestação cultural e de maneiras alternativas de espiritualidade.”.[12]

Até este ponto demonstramos um exemplo de disputa pelo currículo escolar que considera a questão cultural. Segundo d’Adesky (2001)[13] educação e cultura são os principais focos irradiadores de discriminação: “Poder-se-ia debater longamente sobre essa afirmação sem deixar de concluir, com absoluta certeza, que a educação é um dos instrumentos a favorecer o preconceito e que, por meio dela, a cultura mantém a perpetuação das relações de dominação, nascidas no tempo da colonização e da escravidão.” (p.172). Sendo assim, a educação brasileira expressa uma hegemonia cultural euro-brasileira e também uma exclusão das heranças afro-indígenas dos currículos.

Acerca da disputa por espaço no currículo escolar protagonizada pelos movimentos sociais negros e os representantes da Frente Parlamentar Evangélica é importante destacar que o direito à liberdade de consciência e de crença e a defesa do pluralismo de idéias são reconhecidos pela legislação educacional brasileira e praticados na formação de docentes e nas escolas brasileiras. O desafio é superar um padrão educacional fortemente marcado pelo eurocentrismo e pelo racismo, e nesse sentido a Lei 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana são indispensáveis para que o Estado cumpra o seu papel de oferecer uma educação de qualidade para todas as pessoas.

 

 

¹Mestre em Geografia (UERJ-FFP).

 

 

Referências:

1. HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. 1979.

2. SANTOS, Sales Augusto. A lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In: SANTOS, Sales Augusto (Org). Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.636/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

3. BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.

4. Disponível em <http://www.acordacultura.org.br/>. Acesso em: 19/10/2019

5. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

6. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SECAD/ME, 2004.

7. BAKKE, Rachel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na aplicação da Lei 10.639 (Tese de Doutorado). São Paulo, 2011.

8. OLIVEIRA, Marco Davi. A Religião mais negra do Brasil. 1ª ed. atual. Viçosa, Minas Gerais, Ultimato, 2015.

9. Disponível em <https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/posts/628803690603959/>. Acesso em: 20/07/2019

10. Disponível em <http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/2016/04/candomble-eumbanda-em-livros.html>. Acesso em: 26/09/2016

11. Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/515351-deputada-e-debatedor-discordam-em-relacao-a-escola-sem-partido/>. Acesso em: 06/05/2020

12. Disponível em <http://www.escolasempartido.org/livros-didaticos/414-livro-didatico-ferramenta-para-a-revolucao-sociaista>. Acesso em: 20/07/2019

13. D’ADESKY, J. Racismos e Anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.