Rosélia Piquet e o Planejamento Urbano e Regional no Brasil
Boletim nº 71, 30 de junho de 2023
Por Carlos Brandão (IPPUR/UFRJ)
Acaba de ser lançado o livro “Tempos, Ideias e Lugares: escritos em Planejamento Urbano e Regional”, pela Editora E-papers, da professora Rosélia Perissé da Silva Piquet.
A trajetória acadêmica da professora se confunde com a própria área do Planejamento Urbano e Regional no Brasil. Rosélia e essa área do conhecimento completaram recentemente 50 anos de atividades acadêmicas muito profícuas e deram uma contribuição extraordinária para o avanço do conhecimento sobre o complexo, multidimensional e heterogêneo Brasil.
Professora da UFRJ desde 1963, ela conta que se inscreveu no Mestrado em Planejamento Urbano e Regional (COPPE/UFRJ) em 1974. Naquele ano, 110 candidatos disputaram as 30 vagas oferecidas. “Até então, meu campo de interesse concentrava-se nos aspectos macroeconômicos do processo de desenvolvimento segundo a concepção de espaço abstrato das relações sociais. A passagem pelo mestrado indicou-me a importância das repercussões sobre o espaço territorial, em suas escalas nacional, regional e local, das transformações que se operam no plano socioeconômico. A adoção do planejamento como meio de orientar e modificar as tendências da urbanização e como forma de intermediar os conflitos entre interesses nacionais e regionais atravessava seu período áureo no País”. Tal mestrado, daria origem, em 1987, ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, instituição em que Rosélia seria docente e pesquisadora até sua aposentadoria, em 1998.
A trajetória intelectual da professora foi também a de uma construtora institucional, enfrentando grandes desafios políticos e de gestão universitária.
Assim, o presente livro “Tempos, Ideias e Lugares: escritos em Planejamento Urbano e Regional” representa uma contribuição inestimável para o aprofundamento das reflexões sobre os nossos enraizados problemas socioespaciais e vem realizar, ao mesmo tempo, um primoroso balanço de autorreflexão, uma sistematização de sua rica carreira acadêmica e um coroamento daquela trajetória exitosa.
A obra está dividida em três partes: A primeira, intitulada “Concepções sobre Planejamento e Ensino” (com 5 capítulos); a segunda, “Indústria e Território no Brasil” (com 4 capítulos), e a terceira, “Petróleo e Região” (com 7 capítulos). Esses dezesseis capítulos abrangem momentos específicos da carreira da professora, demonstrando a sua dedicação e maturidade ao longo de cinquenta anos voltados aos estudos urbanos e regionais.
Na minha leitura do livro, a linha mestra tecida entre os vários capítulos tem dois alicerces: o primeiro, o da reprodução dinâmica, contraditória e material do capitalismo brasileiro em seu movimento histórico e estrutural, via processo de industrialização; e o segundo, o da dimensão territorial desse desenvolvimento expansivo e desigual, via produção social do espaço e os dilemas e tensões da natureza de nosso complexo processo de urbanização.
Para além desses dois polos e prismas analíticos, o livro realiza um acurado exame dos processos socioespaciais, lançando mão de muitos outros ângulos, dimensões e perspectivas. Um dos pontos-força que gostaria de destacar na trajetória de nossa mestra: ela nunca esquece a dinâmica do trabalho vivo, de pessoas de carne e osso e com seus sonhos, do mundo da vida urbana, a partir do lugar onde labutam e residem, analisando as estruturas ocupacionais regionais, o perfil do emprego regional e a dinâmica socioespacial do mundo do trabalho, em seu movimento no tempo e no espaço.
Muitas outras facetas da realidade concreta, sob diferentes óticas de investigação, estão reproduzidas neste livro. Destaca-se seu pioneirismo ao colocar a problemática dos impactos, no território, dos grandes projetos, a análise do que ela denominou cidades-empresa, dentre outras questões. A presença da grande empresa em geral, e das transnacionais em particular, receberam um tratamento atento em suas investigações. O papel crucial, estruturante e contraditório da ação estatal. Suas decisivas contribuições para o debate do ensino do planejamento urbano e regional no Brasil e o papel no território das instituições de ensino superior também se sobressaem. São muitas facetas da produção do espaço que foram estudadas de uma forma criativa e instigante, tais como: a articulação entre salário, moradia e espaço urbano; a moradia operária; a indústria metropolitana etc.
Após suas marcantes contribuições para o debate regional e metropolitano brasileiro, quando era professora da UFRJ, a parte três do livro revela o período dos últimos 20 anos da trajetória intelectual da professora. Em 2001 ela aceitou o convite da Universidade Cândido Mendes, em sua unidade de Campos dos Goytacazes, para criar um Mestrado em “Planejamento Regional e Gestão de Cidades”, do qual foi Coordenadora por duas décadas.
A partir da UCAM de Campos, graças à liderança da professora Rosélia, o Norte Fluminense se tornou a região mais estudada e da qual temos maior conhecimento acumulado, depois da RMRJ. Seu papel nas últimas duas décadas de investigações sobre as especificidades de uma região tão singular no contexto do heterogêneo território fluminense foi disruptivo. A aglutinação em torno dela de um grupo competente e comprometido de pesquisadoras e pesquisadores que buscam diariamente o desvendamento dos processos histórico-estruturais e conjunturais do Norte Fluminense foi fator decisivo para que se consolidasse hoje, não apenas uma enriquecida perspectiva sobre a socioeconomia fluminense, como também uma espécie de economia política regional petrolífera, com destaque para o papel das rendas provenientes de royalties e participações especiais.
Em suma, além das atividades de ensino, pesquisa, extensão e administrativas, distingue-se também seu papel como incansável construtora institucional. O caminho percorrido foi longo, cheio de desafios e muito fértil. Importantes posições foram ocupadas pela professora. Dentre várias funções, destacaria, por exemplo, seu papel de liderança na direção e consolidação do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ e, mais recentemente, no movimento de impulsionamento dos cursos interiorizados de alta qualidade, inclusive dos programas de pós-graduação da modalidade profissional.
Por fim, mas não menos importante, gostaria de lembrar que, sobretudo em um país e em uma sociedade tão conservadora e machista como a brasileira, pode-se imaginar os preconceitos e os obstáculos que surgiram para uma atuação acadêmica e institucional tão ativas como a da Professora Rosélia Piquet.