A cidade do amanhã e o trabalho ambulante: tiro, porrada e bomba

Boletim nº 72, 31 de agosto de 2023

 

A cidade do amanhã e o trabalho ambulante: tiro, porrada e bomba

 

Bruna Ribeiro 

Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Rio de Janeiro. Pesquisadora do Labá – Direito, Espaço & Política.

Beatriz Terra 

Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo RJ.

 

Em 2009, teve início o primeiro mandato de Eduardo Paes na Prefeitura do Rio de Janeiro. No aspecto do trabalho ambulante, como aponta o Dossiê de Violações ao Direito ao Trabalho e ao Direito à Cidade dos Camelôs no Rio de Janeiro (2014), apesar do longo histórico de repressão aos camelôs na cidade, a situação se agrava nesse período, marcado por tentativas de elitização da região central, em oposição ao seu reconhecimento como local estratégico de experimentação do direito à cidade para as classes populares. O discurso do “ordenamento urbano” legitima a criação da Secretaria de Ordem Pública (SEOP) e instauração da prática do Choque de Ordem, apoiada em uma doutrina de forte repressão que possuía receptividade da mídia e de parte da sociedade civil. 

Em levantamento de notícias do jornal O Globo realizado no período de criação do Choque de Ordem (2009) pelo Grupo de Pesquisa Direito à Cidade, do Observatório das Metrópoles – Núcleo RJ, observa-se que as ações realizadas pelo programa são mais abrangentes do que constam em decretos, e envolvem construções irregulares, ocupações, população de rua, comércio informal, catadores, ambulantes, flanelinhas e estacionamentos irregulares nas regiões centrais e zona sul da cidade. Cabe destacar que o programa também legitima a repressão e internações compulsórias de pessoas em situação de rua. As reportagens deste ano também demonstram que, além da mídia, diversos grupos e atores sociais apoiam a implementação do Choque de Ordem, por compartilharem do entendimento de que a simples existência e apropriação dos espaços urbanos pelos grupos sociais citados causam desordem na cidade.

Passados 12 anos, a gestão de Eduardo Paes segue tendo o mesmo entendimento e olhar sobre os pobres urbanos que moram, trabalham e vivem no centro da cidade. No dia 29 de abril de 2021, início do terceiro mandato do atual prefeito Eduardo Paes, a Prefeitura lançou o decreto 48.806, que “determina a realização de intervenção especial de ordenamento urbano em área da Avenida Rio Branco e na Praça Floriano, no Centro da Cidade”. Entre outras questões, o decreto determina que a intervenção espacial seja coordenada pela Secretaria Municipal de Ordem Pública – SEOP (a mesma que, em 2009, foi responsável pela implementação do Choque de Ordem) e que é objeto dessa intervenção prevenir e coibir, entre outras, as atividades do comércio ambulante.

Na sequência, são lançados mais dois decretos, 48.987/2021 e 50.174/2022, que ampliam a área da intervenção especial de ordenamento urbano para outros locais no Centro do Rio de Janeiro, além da Avenida Rio Branco, como Largo da Carioca e importantes ruas transversais à Avenida Rio Branco. Desde então, a Guarda Municipal e a SEOP, com aval da Prefeitura, vêm cometendo inúmeras violações de direitos para reprimir o trabalho ambulante em toda a cidade, com especial soma de esforços na região central. 

A imposição desses decretos vem paralelamente ao projeto Reviver Centro [1] e à discussão da revisão do Plano Diretor, que se arrasta desde o ano de 2021. Ambos trazem uma visão de cidade que também é marca dos mandatos anteriores de Eduardo Paes, que diante de inúmeras violações de direitos, justifica as ações com base na ideia da cidade “limpa” e “ordenada”. Considerando especialmente o Reviver Centro, que coloca pontos específicos da região como foco da revitalização, movimentação e incentivos para o mercado imobiliário, é interessante e conveniente para a Prefeitura que o território esteja livre de todos os grupos em situação de vulnerabilidade social, como ambulantes, população em situação de rua e moradores de ocupações e cortiços que historicamente habitam a região.

Dito isto, o objetivo deste texto é visibilizar a repressão e criminalização do trabalho ambulante na atual gestão municipal, indicando, também, as resistências existentes contra o programa de intervenções urbanas, que, mesmo diante do desequilíbrio de forças, promovem fissuras simbólicas e políticas. Os camelôs se organizam diariamente para continuar trabalhando e, com isso, a ida ao trabalho e a permanência nas ruas se tornam objeto de luta e resistência, que culminam em múltiplas ações com o objetivo de chamar atenção do poder público – em meio aos investimentos direcionados para a área e realização de mais um projeto de intervenção urbana – e ganham inserções em grandes veículos da imprensa [2], na tentativa de arrefecer a violência praticada pelos agentes públicos, de sensibilizar e de informar a sociedade civil sobre o tratamento dado pelo poder municipal aos trabalhadores que buscam remuneração honesta e legítima trabalhando nas ruas.

Cenário atual da condição de trabalho dos ambulantes

Além dos decretos que já somam três e possuem uma grande área de intervenção especial do ordenamento urbano, o processo de emissão das TUAPs (Taxas de Uso de área pública), documento de regularização do comércio ambulante, não é realizado de forma transparente e em diálogo com as demandas da categoria. A ausência de regularização deixa os trabalhadores em situação de maior vulnerabilidade, e diante do cenário econômico do país não impede que estejam nas ruas para garantir o seu sustento e o das suas famílias, enquanto aguardam, há anos, pelo documento de legalização concedido pelo Poder Municipal.

 A pesquisa Morar, Trabalhar e Viver no Centro realizou entrevistas com os ambulantes da região central nos meses de maio a julho de 2023, buscando identificar os pontos de concentração dos ambulantes e as principais mercadorias que comercializam. Identificamos trabalhadores como Carlinhos, que trabalha no Largo da Carioca há 23 anos, e mesmo seguindo todos os trâmites exigidos para ter acesso à TUAP, segue sem resposta, conforme relato abaixo: 

Esse tempo todo aí, tanto eu, quanto vários amigos que já trabalharam aqui, já tentamos arrumar TUAP, licença para trabalhar, alguns correm atrás disso há 20 anos, outros correm atrás 15 anos, 10 anos, enfim. Sempre tem uma desculpa, eles pedem várias coisas, a gente faz uma função, vai na delegacia puxar ficha, se já foi preso, enfim, tudo que eles pedem a gente faz de tudo pra gente poder [entregar e] ter essa licença. Só que na verdade eles só dão um protocolo. A cada cinco anos eles dão protocolo, protocolo de andamento com essa licença e vão passando 10 anos, 15 anos, enfim, a gente fica aí na rua [sem autorização] não é porque a gente quer, é porque a Prefeitura dificulta muito para a gente poder ter uma licença e trabalhar honestamente“.

A pesquisa de campo contou com pesquisadores do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ), do grupo de pesquisa Direito à Cidade, e também de pesquisadores do Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), identificando que existem, no mínimo, 1.150 ambulantes trabalhando nos pontos de concentração da área central do Rio de Janeiro, que compreende o mapa abaixo [3]:

Fonte: Elaboração Grupo de Pesquisa Direito à Cidade – Observatório das Metrópoles Núcleo RJ

As áreas de maior concentração são também as áreas de maior atuação da Guarda Municipal e da SEOP. Em visita ao campo em maio de 2023, o veículo da Guarda Municipal se encontrava parado em frente à entrada do metrô do Largo da Carioca. Um dos entrevistados [4], estava mais afastado e sem expor a sua mercadoria, na expectativa de que os agentes fossem embora para assim conseguir trabalhar.

Fonte: Acervo das autoras

Fonte: Acervo das autoras

Além da manutenção de um sistema de violência com os ambulantes, impedindo-os de trabalhar e, consequentemente de receber recursos para suas sobrevivências, não há nenhum tipo de apoio para que o trabalhador passe o dia na rua. Não há banheiros públicos, nem locais em que possam almoçar ou esquentar a comida. Esse tipo de infraestrutura básica depende dos acordos e agenciamentos que possuem com o espaço e o comércio ao redor.

Diante desse cenário, os ambulantes se organizaram para promover uma audiência pública, em mais uma tentativa de serem ouvidos e considerados pelo poder público. Na seção a seguir serão apresentadas as cinco pautas urgentes e prioritárias que foram elencadas e o histórico de realização da audiência.

Audiência Pública para a garantia dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores informais

No dia 27 de junho foi realizada audiência pública promovida pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH) que contou com a articulação do Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), do Ambulantes Unidos de Eventos e do SindInformal, três importantes organizações de ambulantes que atuam na cidade do Rio de Janeiro, em parceria com o Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). Para a ocasião foram convocados representantes da SEOP, da Guarda Municipal, da Secretaria de Trabalho e Renda, e demais instituições do poder público cuja atuação articulam a pauta dos camelôs.

Das instituições convocadas apenas a Guarda Municipal enviou representantes e compareceu à audiência. Destaca-se a ausência de representação da SEOP e da Secretaria de Trabalho e Renda, que não compareceram e/ou justificaram ausência em importante esfera de diálogo institucional que buscou, como pauta prioritária, o arrefecimento da violência e organização do trabalho ambulante.  

Na audiência foi apresentada uma carta de Requerimentos e providências urgentes para a efetiva garantia de direitos das e dos trabalhadores e trabalhadoras ambulantes da cidade do Rio de Janeiro [5], elencando cinco pautas comuns aos três movimentos sociais para serem debatidas com o poder público, sendo: (i) fim da violência e da repressão ao comércio ambulante; (ii) retirada da fiscalização do comércio ambulante da SEOP para a Secretaria Municipal de Trabalho e Renda;  (iii)  pelo mapeamento in locu, pela regularização do comércio ambulante e pela transparência das outorgas de “TUAPs” através do CUCA; (iv) suspensão dos estouros de depósitos informais até a efetiva regulamentação da Lei Municipal n° 6.426/2018 e regularização de depósitos de mercadorias junto da categoria dos trabalhadores ambulantes; (v) planejamento e apoio efetivo para a constituição de Centros de Referência dos Camelôs e Trabalhadores Informais; 

Os camelôs – que são majoritariamente cidadãos negros e pobres, que necessitam de políticas públicas integradas, que tratem de garantir a dignidade humana, o direito ao trabalho e o direito à cidade –, são vistos a partir de um referencial racista e se tornam mera questão de ordem pública, devido à criminalização histórica dos agentes públicos com os pobres urbanos. Identifica-se que as ações violentas passam pela desumanização dos trabalhadores, tanto pela Guarda Municipal, quanto pelos agentes da SEOP, e são desconsideradas as questões atinentes às relações sociais (de trabalho, de produção, de vida), aos direitos humanos e ao desenvolvimento social desses sujeitos. 

Desse modo, o documento elaborado pelos movimentos sociais para a audiência pública reivindica o fim da violência e a urgente retirada da fiscalização do comércio ambulante da SEOP para a Secretaria Municipal de Trabalho e Renda. Considerando que o camelô é trabalhador, e não um problema da ordem pública. 

Sobre a distribuição das TUAPS, consideram urgente que o poder público municipal retorne a política de regularização com a devida outorga de autorização de uso de área pública para o exercício da camelotagem, identificando os espaços potenciais vazios e organizando o comércio ambulante carioca. É importante destacar que a reivindicação dos movimentos é para que o mapeamento e cadastramento dos trabalhadores ambulantes seja feito in locu, a fim de identificar quem de fato trabalha na rua. Tal processo deve ser realizado com a devida transparência da administração pública municipal, permitindo que os trabalhadores ambulantes possam auferir a sua pontuação e posição na lista do Cadastro Único do Comércio Ambulante (CUCA). 

O quarto ponto da pauta destaca a urgente necessidade de regulamentação dos depósitos. Considerando que os ambulantes precisam guardar suas mercadorias e módulos em local próximo ao posto de trabalho, a não regulamentação dos depósitos faz com que esses espaços sejam considerados ilegais, legitimando que a Prefeitura realize amplas apreensões de bens e mercadorias, inclusive de camelôs autorizados pelo poder público. Logo, diante da omissão do Poder Executivo municipal, os movimentos reivindicam a suspensão dos estouros de depósito até a efetiva regulamentação dos mesmos. 

Por último, reivindicam a criação dos Centros de Referência dos Camelôs e Trabalhadores Informais na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo é a criação de espaços para receber os trabalhadores informais da cidade, com vistas a garantir acesso a banheiros, fraldário e a uma cozinha onde possam realizar suas refeições, além de prestar acolhimento às demandas da categoria e a possibilidade de ofertar assistência social e jurídica, por meio de parcerias com assessorias técnicas.

Considerações Finais 

Diante da estratégia do poder público municipal de não manter canais abertos de diálogo com as organizações representativas dos camelôs, os movimentos de ambulantes buscam incessantemente estratégias de pressão visando à abertura de canais de diálogo. A partir de uma vivência recorrente de agressões moldam suas estratégias de luta, que passam por manifestações políticas variadas e tentativas institucionais de abertura de canais de participação, como apontam os encaminhamentos desejados após a realização da audiência pública. 

Os movimentos de ambulantes representados na ocasião (MUCA, Ambulantes Unidos de Eventos e SindInformal) propõem a constituição de uma frente parlamentar para solicitar uma audiência conjunta com a Prefeitura e a promoção de uma audiência na comissão de direitos humanos da ALERJ. Em relação à guarda municipal, ressaltou-se que as ações, com qualquer cidadão carioca, devem priorizar o respeito aos trabalhadores e aos direitos humanos, indicando também a necessidade de estabelecerem um canal de mediação de conflitos e recebimento de denúncias, composto pela ouvidoria da Guarda Municipal com a participação e representação dos camelôs. Exigiu-se a transparência na apuração das denúncias da corregedoria, para além da publicação no Diário Oficial, incorporando o envio das conclusões das apurações para as organizações e envolvidos. 

Dois meses após a audiência nota-se que os mecanismos de repressão e controle social autoritário e seletivo permanecem na atuação dos agentes públicos do Poder Municipal, sejam eles da SEOP ou da GM-Rio. Deste modo, os ambulantes continuam incansáveis na luta pelo direito ao trabalho e à cidade, por respeito, dignidade e pela urgência de serem ouvidos pelo poder público e humanizados como trabalhadores que são, confiantes no ideal de uma cidade socialmente justa e integrada não apenas para determinadas classes, mas que considere os/as camelôs que existem e resistem historicamente na cidade do Rio de Janeiro. 

[1] Ver análises sobre o Reviver Centro em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/reviver-o-centro-para-quem-analise-preliminar-sobre-o-programa-apresentado-pela-prefeitura-do-rio-de-janeiro/ e https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/programa-reviver-centro-turbinado-a-expansao-da-logica-do-mercado-na-requalificacao-da-regiao-central-carioca/#:~:text=Institu%C3%ADdo%20pela%20Lei%20Complementar%20n,contexto%20da%20recuperação%20da%20pandemia.

[2] Camelôs se acorrentam na porta da Câmara contra truculência na fiscalização:  https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/04/27/camelos-se-acorrentam-na-porta-da-camara-contra-truculencia-na-fiscalizacao.ghtml acesso em agosto 2023

[3]  Diante da ausência dos camelôs nos postos de trabalho devido à repressão do Choque de Ordem e da Guarda Municipal, que se encontrava massivamente nas ruas, os pesquisadores apontam no mínimo 1.150 trabalhadores, sabendo que mesmo diante da expressividade dos dados, os números podem estar sub representados. Contudo, denotam a necessidade de escuta e políticas públicas direcionadas que atendam as demandas dos trabalhadores ambulantes.

[4] Entrevista realizada com Carlinhos, mencionado anteriormente, que vende cartuchos, no dia 19 de maio de 2023 no Largo da Carioca. 

[5] A carta foi elaborada pelo MUCA com a contribuição dos Ambulantes Unidos de Eventos, SindInformal, Observatório das Metrópoles e NUDEH. Destacamos a participação da pesquisadora doutora Anna Cecília Faro Bonan na produção do documento e detalhamento das propostas.