A importância da territorialidade nas políticas públicas de gênero: reflexões a partir da atuação do Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa

 

Boletim nº 68, 29 de março de 2023

Por Maria Clara Molisani Mendonça¹

Diante do cenário brasileiro das políticas públicas de gênero, dispositivos interdisciplinares, pensados para articular as categorias gênero, classe e raça, que incentivam a autonomia e autoestima, se destacam pela habilidade de contemplar a dimensão estrutural das violências que atingem as mulheres.

Nesse sentido, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, elaborada em 2005, prevê o desenvolvimento de uma rede integrada de atendimento às mulheres em situação de violência.  Entre as instituições que constituem essa rede estão os Centros de Referência, locais que  buscam romper com o ciclo de violência e construir e resgatar a noção de cidadania por meio de seus serviços, baseados em atendimentos multidisciplinares 2. 

O Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa, criado nos anos 2000 e gerido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é uma dessas instituições e  se fundamenta em três eixos de atuação: atendimento à mulher, capacitação e empreendedorismo. 

Localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro no sub-bairro da Vila do João, parte do Complexo da Maré, o Centro tem por objetivo “ampliar e consolidar o atendimento e acompanhamento psicológico, social e jurídico às mulheres em situação de violência de gênero, em sua expressão doméstica e investir na formação de quadros (graduação), na pesquisa e extensão na área de políticas públicas em direitos humanos para as mulheres.”3

Esses pilares foram investigados na pesquisa de conclusão de curso intitulada Violência doméstica e familiar e a discriminação interseccional: um estudo sobre a atuação do Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa, que buscou investigar a experiência do CRMM-CR, entender a teoria do projeto e como ele era desenvolvido na prática, como as pessoas que trabalham na instituição enxergam o trabalho que elas fazem e o cenário em que estão inseridas.

A pesquisa contou com a realização de entrevistas com funcionárias da instituição e trouxe resultados importantes, como a necessidade de se pensar o contexto local. A influência do Centro no território em que está localizado e vice-versa é um ponto crucial para entender o trabalho feito pela organização. Como em outras regiões de periferia, o Complexo da Maré é perpassado pela negligência do Estado, que falha em garantir direitos básicos como saúde, lazer, cultura e educação, e pela ótica capitalista que limita o espaço à condição de  um abrigo aos trabalhadores e trabalhadoras nas horas entre suas jornadas de trabalho. Embora a todo momento moradores e moradoras da Maré desafiem esses limites e desenvolvam uma relação com o território que vai muito além deles, suas condições materiais de vida seguem fortemente impactadas pela atuação das forças políticas e econômicas.

Nesse contexto, o trabalho do CRMM-CR, que em um primeiro momento seria direcionado a questões de violência de gênero mais específicas, como a violência doméstica, acaba por se expandir para considerar as bases materiais e estruturais em que vivem essas mulheres,atuando de forma a mudar e desenvolver a realidade das moradoras da Vila do João.As estratégias de enfrentamento à violência propostas pelo Centro são interdisciplinares e contam com atendimento e acompanhamento jurídico – por onde grande parte das mulheres entra em contato com a instituição, buscando resolver questões legais e psicossociais. Outras frentes em que a instituição atua são na orientação sobre as desigualdades de gênero, por exemplo, através da exibição de filmes e debates; do fortalecimento da cidadania das mulheres e da elaboração de estudos e indicadores de avaliação de políticas públicas. 

A interdisciplinaridade também fica evidente quando as atividades propostas pelo CRMM-CR buscam contemplar diferentes demandas ou privações . As oficinas têm como objetivo incentivar a autonomia e o empreendedorismo enquanto promovem um espaço de troca e socialização entre pessoas que, apesar de viverem fisicamente próximas, muitas vezes não se conectam ou que não são permitidas se conhecer a fundo, principalmente pela dinâmica dos espaços onde moram. Todos os trabalhos do Centro se propõem, portanto, a entregar um espaço seguro, livre de julgamentos e com uma escuta ativa. 

Por ser um Centro de Referência “de bairro”, como citado por uma das entrevistadas, muitas ações da instituição são voltadas para serem reconhecidas como uma parte integral daquela comunidade, para não ser estigmatizada como um lugar frequentado apenas por mulheres em situação de violência doméstica , para não ser associada com instituições policiais, geralmente mal vistas por instigarem medo e revolta nos moradores da Maré. Realizar ações que em um primeiro momento podem parecer fora do seu escopo de atuação, como abrir as atividades para mulheres em geral e não apenas mulheres em situação de violência doméstica, aproxima o CRMM-CR da comunidade, ajuda a construir uma relação, a ganhar a confiança do seu público e a instigar um pensamento coletivo.

O caso do Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa exemplifica a adaptação pela qual políticas públicas afirmativas passam ao serem inseridas no contexto local, onde serão materializadas, sendo esse um fator determinante para o sucesso de uma política pública.4 Assim, o trabalho realizado pelo CRMM-CR se depara com desafios internos e externos, sendo imprescindível se adaptar para que o propósito da instituição seja atingido, mantendo um serviço de qualidade e respeito. 

 

1 Graduada em Defesa e Gestão Estratégica Internacional (DGEI/UFRJ).

2 Brasil. Norma Técnica de Uniformização: Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Brasília: Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; 2006; 45 p.

3 Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa. Disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/crmm/missao.html

4 GOMES, Sandra. Sobre a viabilidade de uma agenda de pesquisa coletiva integrando implementação de políticas, formulação e resultados. In: LOTTA, Gabriela (org.). Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap, 2019, p. 39-66