Casa Almerinda Gama: a ocupação feminista que acolhe e empodera mulheres no Rio de Janeiro

Boletim nº 74, 31 de outubro de 2023

Contribuíram com a matéria os/as discentes do GPDES  Eduardo Assis, Fernanda Fernandes, Karina Medeiros, Letícia Toledo

Imagem: Duda Lessa @umaduda

No dia 08 de março de 2022, data comemorativa do Dia Internacional da Mulher, nasceu a primeira ocupação organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário no estado do Rio de Janeiro, a Casa de Referência da Mulher Almerinda Gama, na capital fluminense. A Casa Almerinda Gama está situada na Rua da Carioca nº 37, onde antes funcionava a famosa loja Guitarra de Prata. O edifício tem dois andares e conta com uma arquitetura que lembra um casarão antigo. O imóvel, que estava abandonado há mais de oito anos sem cumprir qualquer tipo de função social, foi ocupado pelo movimento para ser utilizado como um local de acolhimento às mulheres. As ocupantes, no entanto, estão enfrentando um processo judicial movido pelo Governo do Estado reivindicando propriedade do imóvel e pleiteando a desocupação pelo movimento.

O Movimento de Mulheres Olga Benário nasceu em 2011 como um movimento feminista socialista que se concentrou na luta pelos direitos das mulheres, especialmente no que diz respeito ao direito à creche e ao enfrentamento à violência de gênero. Atualmente o movimento é atuante em cerca de 20 estados brasileiros e desenvolve iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica e em situação de vulnerabilidade social. Por meio de ocupações de imóveis abandonados que não estão cumprindo sua função social, busca-se  reivindicar políticas públicas para a construção de espaços e equipamentos destinados ao atendimento e acolhimento dessas mulheres, contando com a colaboração de profissionais voluntárias, como advogadas, psicólogas e assistentes sociais, que desempenham um papel crucial na prestação do atendimento humanizado e personalizado.

A Casa Almerinda é o único centro de acolhimento do movimento Olga Benário no Rio de Janeiro e tornou-se um centro de referência no enfrentamento à violência de gênero, fornecendo abrigo e apoio a mulheres em situações de vulnerabilidade. A ocupação simboliza a forma como a sociedade civil pode se mobilizar para enfrentar desafios sociais complexos e evidenciar as fragilidades do Estado, além de ser um espaço de formação cultural, política e de construção de autonomia das mulheres.

Segundo o próprio Movimento de Mulheres Olga Benário, “o objetivo das Casas não é substituir ou derrubar as ações do Estado, mas sim acolher, acompanhar e encaminhar mulheres que precisam de medidas urgentes”. Acrescenta-se, ainda, o objetivo de  “organizar estas mulheres para que possam lutar pela libertação de outras mulheres, fazendo crescer o trabalho e as nossas conquistas”. 

Nesses termos, a Casa Almerinda Gama funciona como um local seguro e acolhedor, onde as mulheres encontram apoio emocional, informações sobre seus direitos, encaminhamento para registrar o boletim de ocorrência na delegacia da mulher e, caso necessário, contam com o suporte jurídico para as medidas necessárias para sua proteção. A Casa também tem um papel fundamental na organização e mobilização das mulheres, promovendo a conscientização sobre seus direitos, estimulando a participação política e atuando na prevenção e no combate à  violência de gênero, servindo como um espaço de debate e discussão sobre políticas públicas relacionadas às mulheres.

Entretanto, mesmo diante desse importante trabalho para a sociedade, o Governo do Estado requer via ação judicial a desocupação do espaço, sem nenhuma tentativa de diálogo com o movimento. A ação judicial proposta pelo Governo Estadual contra a ocupação teve início em maio de 2022. Apenas em outubro do mesmo ano as coordenadoras da Casa foram oficialmente  notificadas, tomando então conhecimento sobre a existência do processo. Desde então, todas as medidas cabíveis foram tomadas, com foco na tentativa de estabelecer ao menos um diálogo para negociação. No entanto, as tentativas nesse sentido têm sido sistematicamente ignoradas pelo Governo.

De acordo com as alegações do Estado, a propriedade é considerada um patrimônio cultural e, portanto, deve ser protegida contra ocupações não respaldadas pelo Poder Público. O Estado também sustenta que a desocupação da casa é necessária para a segurança das mulheres que ali se encontram, com apoio em um laudo de vistoria da Defesa Civil, que apontaria para a existência de riscos e de fragilidades na segurança do imóvel.

Em contrapartida, o grupo ocupante argumenta que, apesar de o Estado justificar que o imóvel integra o patrimônio cultural, houve um abandono de 8 anos sem cumprir qualquer tipo de função social. Somente no momento em que a ocupação passou a ser utilizada como um local de acolhimento às mulheres, o Estado passou a se importar com o uso do espaço. É também incoerente o argumento que se refere às condições de segurança das próprias ocupantes, uma vez que as más condições para uso e habitação decorrem justamente do abandono do imóvel pelo Poder Público.

As representantes da Casa argumentam, ainda, que o  laudo da Defesa Civil apresentado como evidência para a desocupação imediata não considera aspectos internos da casa, pois não houve uma vistoria do órgão no local. Em contraposição, um contralaudo produzido por uma rede de arquitetas que assessoram o Movimento Olga Benário opõe-se  ao documento utilizado pelo Estado. Além disso, como sustentam as mulheres do movimento, nenhuma proposta de renovação do edifício ou de utilização por parte do Governo Estadual foi apresentada no caso de desocupação. Da mesma forma, nenhuma alternativa de realocação foi oferecida ao movimento com vistas à continuidade das atividades desempenhadas pela Casa Almerinda Gama.

O pedido de desocupação via ação judicial se baseia unicamente em questões estruturais e na reivindicação de propriedade do imóvel, sem apresentar qualquer encaminhamento ou medida para a urgente situação das mulheres em contexto de violência e de vulnerabilidade no Estado do Rio de Janeiro. O processo já se estende por mais de um ano e tem como marca fundamental o empenho do Estado em obter a desocupação do imóvel sem que as mulheres ocupantes sejam sequer ouvidas nos autos.

Nesse cenário em que se cruzam o direito à propriedade, a preservação do patrimônio cultural e a garantia da segurança e proteção das mulheres contra a violência de gênero, importantes questões sobre justiça social e espacial se colocam: como repensar a lógica de ocupação e ordenação do espaço em defesa da vida e dos direitos das mulheres? Diante disso, a luta da Casa de Referência da Mulher Almerinda Gama simboliza uma batalha mais ampla pela justiça de gênero e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.