Os países africanos e o amanhã nas regiões no sul global em era de globalização

Boletim nº 74, 31 de outubro de 2023

Por Bráulio Sebastião André

Doutor pelo Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro  – IPPUR/UFRJ. Pesquisador de pós-doutorado no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Universidade de São Paulo – LabHab/FAU/USP.

 

Introdução

Tratar a questão relativa ao continente africano significa, em certa medida, falar sobre um quarto da superfície da terra e cerca de 17% da população mundial – percentagem esta que poderá dobrar até 2050 segundo as previsões da ONU (Relatório ONU, 2019). Neste sentido, corresponde à “última fronteira do capitalismo global” (Saraiva, 2015). Para muitos, trata-se de região periférica à globalização no âmbito da história de expansão do capitalismo e marcada por fluxos de natureza distinta, vinculados a processos com tendência à criação de desigualdades (Harvey, 2005).

Na perspectiva de Dollfus (1993), a atual dinâmica do “sistema mundo”, tendo por base o princípio do desenvolvimento desigual combinado (Trotsky, 2007), referente à espacialização do capitalismo em âmbito mundial, ampara-se em uma divisão territorial do trabalho, tendo por fundamento uma assimetria de poder. Em outras palavras, e conforme propõe Charnock & Starosta (2016), o fundamento da diferenciação na desigualdade espacial do capitalismo a nível global precisa ser buscado nas distintas formas de exploração e nessa divisão territorial do trabalho.

Assim sendo, fruto da divisão territorial do trabalho, constituem-se, de um lado, as regiões que mandam (também identificadas como países centrais ou do norte global), áreas muito influentes e com grande poder de decisão na ordem global, e, de outro lado, as regiões do fazer, muitas vezes cumprindo, outras negando, as decisões e orientações do centro, tendo em vista sua localização ou condição na ordem mundial,  subordinada às diretrizes e lógicas globais (Santos, 1996). Tal é a condição em que se encontra a maioria dos países no continente africano, no Sul, pertencentes, portanto, à periferia do capitalismo global.

Discutir sobre a perspectiva relativa à condição dos países africanos, refletindo sobre o amanhã das diferentes regiões periféricas na era da globalização, nos leva a refletir sobre a infinidade de conceitos sobre região, um deles pressupondo “região como a delimitação de subespaços, aproximando-nos da concepção de geografia enquanto a ciência da diferenciação de áreas” (Hartshorne, 1978). Embora, o contexto do modo de produção capitalista enfraqueça a ideia de região, isso não deve implicar o abandono da noção e importância da região. Antes pelo contrário, deve implicar sua ressignificação, considerando que, de modo distinto da categoria, o conceito se conjuga a seu tempo.

A partir deste prisma, o esforço de pensar o continente africano não pode perder de vista a existência de “diversas Áfricas” (apesar de não gostar da expressão,  não é o momento nem o lugar mais apropriado para explorar isto): países diferentes, com histórias e sociedades, distintas, sistemas políticos e econômicos diferentes, religiões, hábitos e costumes distintos. Enfim, uma imensa região, constituída por uma infinidade de regiões menores, cada uma com suas peculiaridades, suas singularidades e distintas possibilidades de existência.

Embora não seja o foco de nossa abordagem aqui, alertar sobre a necessidade de se compreender o processo de constituição dos países africanos e seus conflitos e dilemas internos, é crucial para uma reflexão mais apurada e profunda da condição periférica de muitos dos seus países na era de globalização na contemporaneidade. Porém, vamos deixar esse aspecto para uma outra oportunidade e começar a refletir sobre os papéis dos países, ou se quisermos, territórios africanos, na era da globalização. Cabe enfatizar que a busca pela autonomia africana não ocorrerá livre das contradições inerentes à própria dinâmica do espaço geográfico, acentuadas pelas desigualdades na mundialização do capital, que privilegiam certos atores e certas regiões em detrimento de outros. Isto é, por trás destas contradições, dinâmicas e desigualdades da mundialização do capital, estão ações antagônicas das personificações envolvidas – grupos, organizações políticas e econômicas, elites políticas, estados, dentre outros, conforme Charnock & Starosta (2016). Assim, considera-se o território como um recurso (Gottmann, 1975).

Tendo em conta o exposto, neste ensaio pretendemos discorrer sobre três (3) aspectos: 1 – compreender o papel que os países africanos desempenham na contemporaneidade, por muitos considerados como a era da globalização; 2 – refletir sobre os desafios da questão urbana no continente, uma vez que, após o fim dos conflitos armados, muitos países africanos começaram verdadeiros processos de reconstrução nacional, configurando mudanças em suas cidades, mas em contraste com uma manutenção de problemas urbanos; 3 – algumas considerações sobre o abordado em todo o texto, terminando com uma reflexão crítica aos “intelectuais da utopia” e críticos ao continente africano.

Os países africanos na era da globalização, seus recursos e seus conflitos

Recuperando as reflexões de Saraiva (2015), podemos inferir que o destaque que se dá ao continente africano no século XXI pode ser sintetizado em pelo menos três linhas de reflexão sobre o futuro de suas regiões na era de globalização: (1) o avanço da democracia e a diminuição significativa de conflitos armados; (2) o crescimento econômico; (3) o renascimento dos ideais culturais e políticos, bem como um aumento da autoconfiança das elites africanas.

Até finais da década de 80, o continente africano foi marcado por inúmeros conflitos políticos militares, que opunham, por um lado, movimentos independentistas de orientação socialista e/ou comunista, e, de outro lado, movimentos independentistas de orientação capitalista. Com a queda do muro de Berlim, em finais de 1989 e a consequente queda do comunismo na Europa, os movimentos independentistas de orientação comunista na África, apesar de mais fortes ideologicamente e militarmente, foram obrigados a optar pelo fim dos conflitos armados e a negociar com seus opositores a implementação em seus países de regimes democráticos e de multipartidarismo. A década de 90 é marcada, então, pelo fim dos conflitos e o aumento da implementação dos regimes democráticos, ao passo que o início dos anos 2000 é marcado por um aumento da democracia com realizações periódicas de eleições nestes países. Estes eventos fizeram com que os países centrais começassem a olhar para o continente africano com particular interesse.

Este interesse pelo continente africano acontece na esteira de outros lugares considerados “periféricos” ou do “sul global”, como é o caso da América Latina. O continente africano é, deste modo, uma região considerada chave na reestruturação capitalista do estágio atual da globalização. Como considera Saraiva (2015), por alguma razão, tem se observado o fato de que o continente africano tem sido tratado como área prioritária para as novas carteiras de empréstimos do Banco Mundial.

Segundo artigo publicado pela revista Forbes África Lusófona em 2021, no ano de 2020 os países africanos foram responsáveis por 48% da produção mundial de diamantes. Segundo o mesmo artigo, o ranking dos países africanos é liderado por Botswana, responsável por cerca de 33% da produção, sendo também o maior produtor de diamantes do continente; na segunda posição aparece a República Democrática do Congo com 25%; a terceira posição em termos de volume de produção é ocupada pela África do Sul; Angola, ocupa a quarta posição, com 15%; Zimbabwe (5%) o quinto lugar; Namíbia, responsável por 3% da produção, aparece na sexta posição.

Em termos de volume ou quantidade de receitas arrecadadas com a venda de diamantes, os seis países africanos tiveram um valor de 5,8 mil milhões de dólares em 2020 (Sambo 2021).

Os países africanos respondem igualmente por aproximadamente 10% da produção mundial de petróleo, proveniente especialmente da Nigéria, Líbia, Angola, Argélia e Egito (Traiding Economics, 2022). O fator petróleo nos ajuda a compreender o interesse dos Estados Unidos na Nigéria, (Harvey, 2014), bem como a Operação Harmattan – ocupação militar do governo francês no território Líbio, em 2011 ou os meandros envolvendo a morte do Presidente Líbio Muammar al-Gaddafi. Este último ponto suscitaria um grande debate, e não teríamos tempo em esgotá-lo aqui sem perdermos o foco de nossa análise.

Assim sendo, a posição dos países africanos, enquanto periféricos no sistema-mundo da contemporaneidade, mas sobretudo por serem terrenos férteis para o capitalismo global com o fim dos conflitos políticos e militares, nos ajuda a compreender por que grande parte do desempenho de crescimento destes países correspondia à construção ou instalação de infraestruturas e estruturas de inúmeras e diferentes naturezas.

Conforme aponta Saraiva (2015), “lócus de investimentos em ascensão, no decênio 2003-2013, a chamada África ao Sul do Saara, região mais pobre do mundo, cresceu numa média de 5,5% ao ano, tendo o continente mantido inflações médias na casa dos 6%”. No que se refere ao crescimento do PIB anualmente, o desempenho africano, desde 2008, é superior ao observado na Europa e nas Américas (Alves; Antipon, 2020).

Nesta perspectiva, um outro player muito importante no continente africano é a China. A estratégia chinesa de investimento na África tem se mostrado um dos aspectos mais importantes para se entender as novas relações econômicas do mundo na contemporaneidade.

Além do princípio da não interferência em assuntos internos aos países africanos, a China diferencia-se do Ocidente em sua abordagem africana por oferecer um pacote completo aos países de seu interesse. Como aponta Wang (2007), para a África, a China “tem sido um mercado, um doador, um financiador, um investidor, um empreiteiro e um construtor”. Conforme o Relatório do Conselho Chinês das Relações Exteriores (2005), a China foi para África no século XXI não apenas com a necessidade de exploração de seus recursos naturais, mas também com os recursos financeiros e a influência política para perseguir seus objetivos de forma vigorosa.

Segundo Saraiva (2015), não existe capital no continente africano em que não esteja envolvida alguma obra pública de grande dimensão feita com recursos chineses. Este fato reflete uma operação estratégica tendo por base quatro pilares: (1) exportação do modelo chinês de relações internacionais; (2) exportação de bens industriais, incluindo armas; (3) importação de produção primária, especialmente mineral, necessárias à manutenção do crescimento chinês; (4) investimento na construção de grandes projetos urbanos, redes e sistemas técnicos, como aeroportos, portos, estradas, ferrovias, parques industriais e logísticos, dentre outros. 

Além dos Estados Unidos e da China, destaca-se a presença de investimentos europeus em países africanos, com destaque para a França, Índia, Japão e, também, brasileiros. Em relação aos investimentos brasileiros no continente africano, conforme Villas-Boas (2014), entre 2001 e 2009 houve um incremento considerável da presença de empresas brasileiras na África, saindo de um Investimento Externo Direto (IED) na ordem dos US$ 69 bilhões para US$ 214 bilhões. 

As empresas brasileiras estão presentes na maioria dos países africanos, mas quatro países são o principal destino destas empresas, designadamente: Angola, África do Sul, Moçambique e Líbia. Entre as maiores corporações, os setores da infraestrutura, da energia e da mineração possuem uma maior representatividade, uma vez que possuem maiores capitais (político, material, financeiro…) para lidar com os desafios apresentados pelos mercados africanos.

Podemos então dizer que desde o início dos anos 2000, o fluxo de capitais no continente é positivo, contrariamente à tendência que apresentara anteriormente desde os processos das independências. Esse fenômeno deve-se, não apenas aos investimentos externos, mas também às remessas de capitais decorrentes da diáspora africana, o que representa, desde 2010, aproximadamente 50 milhões de dólares anuais (cerca de 5% do PIB africano), números que são maiores do que a ajuda pública para o desenvolvimento (Saraiva, 2015).

Os desafios da questão urbana no continente africano

Após o fim de grande parte dos conflitos militares, boa parte dos países africanos tem experimentado tempos de um processo acelerado de urbanização, resultante de um crescente interesse externo pelo continente no atual período da globalização. Isto por se tratar de uma região no mundo onde o meio ambiente construído é em grande medida menor, se comparado à América Latina ou Ásia, por exemplo. Esse fato configura o continente como um lugar favorável à agressividade do capital e à sua incansável necessidade de crescer e se expandir (Harvey, 2005).

Existem estimativas realizadas por agências ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU) de que, até 2030, a população das cidades deverá aumentar 85% nos países da região. Dessa forma, mais da metade da população africana será urbana – pouco mais de 1 bilhão de pessoas (Country Meters, 2022). “Atualmente, apenas um terço dos habitantes do continente o são. Tal crescimento será resultado tanto do rápido crescimento vegetativo das principais cidades quanto dos intensivos processos de êxodo rural e metropolização das sociedades, algo já vivido pelas economias mais avançadas” (Alves, 2022). 

Calcula-se que, até o ano de 2030, a taxa de urbanização ultrapasse os 50%. A parte do continente africano ao sul do Saara tem hoje 53 cidades com mais de um milhão de habitantes e estima-se que esse número chegue a 70 no ano de 2025. Para que se entenda a escalada de crescimento dessas aglomerações, lembremos que, no ano de 1950, essa grande região africana não tinha nenhuma cidade com essa dimensão (ONU-HABITAT, 2012).

Na perspectiva de Buchy (2015), a atual e acelerada transição urbana africana seria o evento mais importante em curso no continente desde os movimentos e processos de independência nos anos de 1960. Hoje é possível observar que as cidades africanas mais engajadas em processos de reestruturação urbana não se mostram apenas como espaços de pobreza e violência, mas também como espaços “geoeconômicos”, de abertura e construção de redes e novas solidariedades. Um dos mais sobressalentes retratos espaciais da globalização, o processo de urbanização e metropolização, se estende pelos países africanos.

Por outro lado, tudo isto é ainda muito embrionário no continente, poucos países têm de fato uma rede urbana estabelecida, como é o caso da África do Sul, e os países da região do Magrebe no Norte do Continente. No mais, apesar dos grandes projetos urbanos e de reconstrução nacional, ainda se observa a predominância de redes urbanas monocefálicas, diretamente ligadas a cidades ou bairros intermediários e com inúmeros problemas de saneamento básico, infraestrutura, mobilidade e habitação.

Mesmo que a questão urbana seja também fundamental para se compreender o papel dos países africanos na era da globalização, deve-se ressaltar a situação rural africana, pois, mesmo passando por um processo de urbanização exponencial, o continente continua sendo a região com maior população rural no mundo, compreendendo até 2007 cerca 600 milhões de pessoas, segundo Cour (2007). Hoje eventualmente estes números podem ser menores em função do aumento do êxodo rural para as grandes cidades, mas o quadro permanece o mesmo.

A condição de periferia do capitalismo em relação a divisão territorial ou internacional do trabalho na contemporaneidade, implica que a questão urbana africana esteja, de alguma forma separada do crescimento econômico. Isto porque o processo de urbanização subordina-se fortemente aos países centrais do capitalismo mundializado por meio de financiamentos e linhas de crédito com tal finalidade. Neste sentido, para muitos, ao que parece, frente ao processo de globalização, a urbanização não se configura como garantia de desenvolvimento das estruturas econômicas e sociais para os africanos.

Neste sentido, enquanto traço de uma formação socioespacial periférica, a desigualdade é fortemente presente na maioria dos países africanos. A falta de acesso aos bens e serviços que conferem a condição cidadã (SANTOS, 1987), bem como as suas implicações, fazem parte da vida dessas urbes: desemprego, precário sistema de transporte público, poluição do ar, do solo e das águas, violência, falta de acesso à água tratada e a alimentação, entre outros, são fatos cotidianos.

Segundo relatório da ONU-Habitat de 2012, o número de habitantes dos slums quenianos, das townships sul-africana, dos musseques angolanos, mais que duplicou na década de 2000. Hoje com certeza os números devem ser bem maiores. Em relação a inserção da região africana no processo de globalização, em 2008 o continente representava 3,2% do comércio mundial, 1% da produção industrial e concentrava 3,4% dos investimentos diretos estrangeiros.

O desafio de combater as desigualdades sócio-territoriais passa não apenas por inserir satisfatoriamente o continente africano na dinâmica do sistema-mundo, mas por integrar o continente internamente, construindo, de fato, verdadeiras redes nacionais e regionais. Isto pois as redes e infraestruturas africanas, tanto no período colonial, quanto mais recentemente no período da economia globalizada, seguem o padrão da extroversão, atendendo a demandas estranhas aos africanos (POUTIER, 2007).

Considerações finais

Tendo em conta o exposto, se pode observar e começar a inferir que atualmente, é possível  observar a necessidade de se buscar a partir de determinadas políticas uma série de reflexões internas aos países, as soluções aos dilemas que estes enfrentam, aproveitando todo o saber e toda a criatividade do sul global. Assim, poderá se desenvolver uma espécie de antídoto contrário ou pelo menos em contrapeso a mobilidade e/ou transferências de políticas estranhas à região de destino, pois na maior parte das vezes configuram-se subordinadas ao capital global, na forma de agências de financiamento, fundos monetários dentre outros, cujas exigências e contrapartidas muitas vezes colocam e mantém os países de destino destes financiamentos, em constante situação de dependência.

Alguns intelectuais, acadêmicos e ideólogos entendem que ao se falar sobre sul global, refletindo sobre a possibilidade de se alterar estas relações de dependência com o norte global e de alguma forma conferindo-lhe maior autonomia, se precisa ter em consideração aspectos que unem a periferia do capitalismo, enquanto formações socioespaciais, assentes sobre a riqueza e a diversidade cultural e a desigualdade sécio-territorial nos lugares, compartilhando suas histórias, sobretudo aquelas de alguma forma atreladas às resistências e insurgências. Nestas alturas vão se buscar um conjunto de grandes intelectuais e revolucionários do sul que com seus feitos de resistência e insurgência reescreveram a história dos países nos países do sul, fundamentalmente na América Latina e na África.

Porém, no que se refere sobretudo ao continente africano, estes pensadores pecam, à medida que continuam presos ao passado (o que não é de todo mau), ignorando que os elementos que unem os países da periferia, são também os mesmos que os tornam diferentes, uma vez que, estes países possuem igualmente trajetórias características históricas, culturais, sociais, religiosas, sociais, antropológicas, políticas e econômicas, completamente distintos uns dos outros.

Há inclusive intelectuais que fazem afirmações utópicas, para o caso do continente africano, a saída da dependência em relação ao centro seria uma união entre os países. Uma abordagem muito pouco cuidada e utópica porque desconsidera o seguinte: 

  1. Elementos como diferenças de cultura e religião sempre vão colocar barreiras na possibilidade de união entre países;
  2. Os diferentes modelos políticos e econômicos dos países africanos – fruto das suas diferentes origens coloniais, configuram dificuldade na sua articulação em enfrentamento aos ideais do norte; 
  3. Demografia, extensão territorial do continente e localização geográfica, configuram dificuldade nesta articulação entre os países. Ou seja, é mais fácil para o Egito, Marrocos, Tunísia, Cabo articular negociações com Países da Europa e Oriente Médio, do que, com países como o Congo, Angola, Zâmbia ou África do Sul, exatamente por questões de localização;
  4. Tratam com estigma e preconceito o continente africano, chamando-o de atrasado e pouco desenvolvido, achando que deveria ser diferente, ignorando que a maioria destes países teve sua independência da década de 1960, e depois entraram para um período de guerras internas e apenas na década 1990 estes conflitos foram diminuindo e só a partir dos anos 2000, é que estes países começaram a caminhar, obviamente com o olhar e interesse dos países centrais e seu capital global.

Estes intelectuais deveriam não apenas visitar o continente com seus preconceitos preconcebidos e fazer suas pesquisas de doutoramento, mas deveriam viver e perceberiam que existe nos países africanos uma sociedade com valores sobre coletividade que não se aprendem em uma sala, biblioteca, quarto ou ao ar livre lendo Marx e o Capital. Compreenderiam que existe uma África, com fome e pobreza sim – assim como a maior parte dos países da periferia, mas que não é apenas isso, está também a fazer seu caminho dialogando entre si e como mundo – sejam eles países centrais ou periféricos ao capitalismo. Existe uma África, completamente diversa, com 56 países completamente distintos, com suas culturas, seus valores, suas religiões, suas tecnologias, suas economias e com toda uma dinâmica interna visível a todos, mas que infelizmente tais mentes pensantes se recusam a ver, pelas razões que apenas elas saberiam dizer – apesar de termos as nossas especulações.

Na divisão internacional do trabalho, o continente africano ainda é um forte fornecedor de commodities como o diamante, o ouro, o ferro, a madeira, o cobalto, plantas (para indústria farmacêutica mundial) e o petróleo. Porém, esta matéria prima não se destina apenas para fora do continente, a divisão interna do trabalho no continente africano vem crescendo muito, cada vez mais os países africanos vão consumindo produtos produzidos por outros países africanos, quer sejam mobiliários, gêneros alimentícios, material escolar, veículos automóveis montados em África, material de escritório, derivados do petróleo, material de construção, indústria cultural.

Os países africanos têm muito desafios na busca da melhoria de vida de suas populações, nos procedimentos em relação a gestão da coisa pública. Porém, ignorar, não conhecer e não se preocupar em estudar ou reconhecer todo o trabalho feito pelos seus governos, seus intelectuais, suas populações, seus blocos econômicos, suas articulações internas para mudar este quadro, é se manter preso à desonestidade intelectual para garantir os financiamentos a pesquisas que reproduzem o estigma de precarização do continente. Essa prática não traduz a totalidade da realidade de todos os países africanos, e é, portanto, reprovável a todos os níveis.

Finalmente, pensamos que no mundo globalizado de hoje ninguém sobrevive só. Em relação ao continente africano, pensamos que é fundamental continuar a dialogar com o mundo todo, buscar garantir nos acordos que seus interesses e de sua população em geral sejam salvaguardados. A África precisa continuar a se fortificar internamente, bem como precisa continuar a dialogar com as Américas, com a Europa e com Ásia. Independentemente das ideologias que governam o mundo, ninguém caminha só, é preciso encontrar elementos de consenso nas relações entre os países, a partir daí, se construírem pontes. Pontes estas no final das contas, que respeitem sobretudo e independentemente de qualquer coisa, a dignidade da pessoa humana

Referências

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