Herança Africana e o papel da disputa epistemológica na cidade do Rio de Janeiro

Boletim nº 80, 1º de julho de 2024

Fábio Donato de Almeida Tardim

Flora Barreto Souza

Isadora de Almeida Dutra

Pedro Henrique de Oliveira Martins

Tiago Feitosa Marques

Discentes do Curso de Especialização em Cidade, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais (IPPUR/UFRJ)

 

INTRODUÇÃO

O Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana no Rio de Janeiro, que reúne a Pedra do Sal, Cais do Valongo, passando pelo Instituto Pretos Novos, Centro Cultural José Bonifácio, Jardins Suspensos do Valongo e a Praça dos Estivadores, é uma conquista no modo de narrar a história do Brasil. Criado por meio do Decreto nº 34.803 da Prefeitura do Rio de Raneiro, de 29 de novembro de 2011, o Circuito retoma espaços e discursividades cruciais para a historia do povo negro ao mesmo tempo que evidencia inúmeras tentativas de apagamento de experiências, sujeitos e acontecimentos que narram e compõem sobre a realidade e o cotidiano daquele povo naquele período e que, até a atualidade, configura também os modos com os quais compreendemos a história, o pertencimento, a ancestralidade e as relações sociais.

O silenciamento da narrativa histórica a partir da perspectiva do povo negro destaca um papel dentro da construção de dominação das configurações capitalistas. Ao compreender sua lógica de funcionamento, não apenas como reguladora do mercado, mas também como colonizadora dos processos de subjetivação, entende-se que as dominações exercidas não se estruturam de maneira externa às lógicas do capital, mas são intrínsecas ao processo de regulação dos processos subjetivos e de suas práticas de gestão da vida. O apagamento da memória, representado pelos anos de ocultamento do Cais do Valongo, além das inúmeras reformas feitas naquele espaço sem a devida orientação técnica, demarcação histórica que destaque ou respeite a ancestralidade do lugar são exemplos destas formas de silenciamento. As disputas narrativas nos processos de exercício do poder dominante se apresentam no movimento de apagar, aterrar e colocar em esquecimento modos de organização social que escapam às práticas disseminadoras de normas e regulações hegemônicas. 

Assim, utilizando a Pequena África e o passado colonial da cidade do Rio de Janeiro como pano de fundo, este artigo visa explorar o movimento de tais dinâmicas a partir de uma perspectiva descolonial, para tanto, faz-se necessário a compreensão de que a história é produzida simultaneamente em diversas partes do globo e o poder assume uma forma ampliada e difusa, em contraposição às noções tradicionais lineares, exclusivistas e estáticas tradicionalmente empregadas.

UM MODO DE PRODUÇÃO FUNDADO EM SISTEMAS DE DOMINAÇÃO

O Capitalismo, como modo de produção baseado na busca do lucro, baseia-se em sistemas de dominação que permeiam as relações sociais e estruturam a organização da sociedade. Marx em “O Capital” já destacava que “A produção capitalista não é apenas a produção de mercadorias; é, sobretudo, a produção de relações sociais, de subordinação, de dominação e exploração” (MARX, 1982).

Trazendo para uma abordagem contemporânea, o conceito do capitalismo transcende a esfera física para se enraizar em elementos determinantes que impulsionam o sistema econômico atual, destacando questões como o capital financeiro, este podendo ser considerado o cerne do capitalismo contemporâneo, além de questões diversas como a informação como elemento de geração de valor e a sustentabilidade como uma responsabilidade diretamente relacionada ao capital. Além disso, as relações exploratórias entre países setentrionais sobre os países em desenvolvimento, destacam relações de poder baseadas na exploração já presentes na história desde o período colonial. O binômio centro-periferia busca se afirmar a partir da suposta supremacia do centro dinâmico do capitalismo.

Dessa maneira, os autores decoloniais, como Aníbal Quijano, encontram na colonialidade uma outra estaca estruturante do capitalismo. Quijano traz a ideia de que a colonialidade formou identidades societais e culturais dividindo o mundo entre nós e o outro, civilizado e bárbaro. A formação de identidades como: índigenas, negros, amarelos, brancos, são produto das necessidades de dominação do capitalismo, e através dessas novas identidades formam-se novas relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia eurocentrada. (QUIJANO, 1992).

Esse foi um processo articulado com o modo de se produzir conhecimento nos grandes centros hegemônicos europeus, que naturalizaram através de argumentos de viés científico, tais relações e identidades da colonialidade. Neste processo, também consolida-se o Eurocentrismo, destacando a ideia da Europa enquanto centro mundial de capitalismo e que o processo de colonização é um produto da sua racionalidade e modernidade. Essa noção caminha em conjunto com a ideia de linearidade do tempo (BOAVENTURA, 2014). O modo de conhecimento eurocêntrico foi então categorizado como modelo racional, e junto com a planetarização do capitalismo, esse modo de produzir conhecimento e de pensar foi imposto a todo o mundo capitalista. 

E ao fazer a leitura do capitalismo como um modo de organização de hierarquias, várias questões estão diretamente associadas, como o processo de transformação da periferia em centro, além de fatores como gênero, raça, língua, credo, dentre outros. Partindo dessa essência exploratória e desigual, o capitalismo encontra na raça um espaço para aprofundar seus mecanismos de dominação. Tais questões, já destacadas por Marx, tornaram a classificação social como um pilar determinante para perpetuar disparidades sociais, representadas através das duas principais classes, a burguesia e o proletariado (MARX, 1982).

Para compreender essa dinâmica complexa, é necessário mergulhar nas raízes históricas, nas teorias clássicas e nas realidades contemporâneas que moldam essa estratificação social, principalmente no que diz respeito ao processo de formação das cidades em países cujo processo de urbanização foi acelerado, como reflexo de processos de industrialização tardia (OLIVEIRA, 1982).

Trazendo a luz ao contexto do Brasil, em especial da cidade do Rio de Janeiro, marcada por processos segregatórios de ocupação do território, as  regiões do Morro da Providência, Cais do Valongo e a Região Portuária agora conhecidas como a Pequena África se destacam como lugares de resistência da história da população negra e suas influências culturais, resgatando a ancestralidade, e o sentido da palavra “lugar”. 

A disputa epistemológica se desenrola no cenário urbano do Rio de Janeiro e a Pequena África serve como uma das âncoras para a resistência à marginalização ao afirmar sua própria narrativa a partir da herança africana. A Pequena África serve, então, de exemplo de luta contra a subalternização e sua presença incontornável no centro do Rio de Janeiro nos recorda de que a história é múltipla e diversa, ao contrário do que afirma a narrativa hegemônica, e atentar contra a hegemonia é parte fundamental de continuar existindo.

RELAÇÕES DE PODER

Longe de ser um atributo estático e singular, o poder pode ser compreendido como uma complexa rede de relações, conflitos e dominações articuladas. Essa concepção do poder passa a apresentar maior poder explicativo e começa a ser discutida na academia com maior interesse e frequência a partir da segunda metade do século XX. 

A iniciar por Michel Foucault que, em seus estudos sobre a genealogia do poder, argumenta que o poder não é algo que se possui, mas algo que se exerce e se manifesta em uma rede de relações. De acordo com Foucault, ‘o poder está em todo lugar; não porque englobe tudo, mas porque vem de todos os lugares’ (FOUCAULT, 1977). Entender o poder enquanto entidade descentralizada permite sua compreensão como difuso e que permeia todas as esferas da vida. Se antes o poder estava localizado apenas nas instituições do Estado ou nas figuras de autoridade, o poder passa a se distribuir e permear as relações sociais cotidianas, encontrando manifestação direto em discursos e práticas que fazem emergir estruturas que modulam as interações humanas. Assim, segundo o filósofo, o poder se projeta através de micropráticas que normalizam comportamentos e produzem sujeitos conforme normas sociais específicas (FOUCAULT, 1987). 

A natureza conflituosa do poder também é central para entender sua dinâmica e metabolismo, uma vez que ele se exerce em meio a resistências, e onde há poder, há resistência. Essa resistência, por sua vez, não é externa ao poder, mas uma parte intrínseca de sua operação. Judith Butler argumenta que ‘o poder não apenas reprime, mas também produz o que afirma suprimir’ (BUTLER, 2003). Portanto, as relações de poder são sempre arenas de conflito, onde dominadores e dominados se engajam em uma luta contínua pela definição e controle dos significados sociais. Se ‘a história é sempre uma história de hegemonia e luta pela hegemonia’ (GRAMSCI, 2000), a luta pela hegemonia cultural envolve não apenas a dominação direta, mas também a construção de consensos através da difusão de ideologias dominantes que naturalizam certas interpretações históricas e epistemológicas.

Assim, torna-se evidente que “a colonialidade é a face oculta da modernidade e que a história tem sido predominantemente escrita a partir de uma perspectiva eurocêntrica” (MIGNOLO, 2005) e que “o colonialismo não se contenta em impor a dominação pela força, mas também através da distorção da história e da identidade do colonizado” (FANON, 1968). Edward Said, por exemplo, argumenta que o orientalismo é uma forma de dominação cultural onde o Ocidente constroi uma imagem do Oriente que justifica e perpetua o controle colonial. Ele afirma que “o conhecimento da geografia oriental foi uma contribuição importante para a dominação e administração do Oriente pelo Ocidente” (SAID, 2007). A dominação colonial, portanto, demonstra com exatidão como o poder se articula em uma rede de relações que não apenas reprimem, mas também constroem realidades sociais a partir de sua necessidade e desejo de projeção. 

A história, tradicionalmente entendida como uma narrativa linear e unificada dos eventos passados, se revela, na verdade, como uma construção plural e multilocalizada imanente dos diversos loci de poder que reproduz processos engendrados e faz surgir diversas epistemologias. É preciso, portanto, que a história seja encarada a partir de uma ‘perspectiva descolonial’, onde múltiplas narrativas e epistemologias são reconhecidas e valorizadas. A visão plural da história defendida por Walter Mignolo, que desafia a narrativa eurocêntrica dominante, implica reconhecer que diferentes grupos sociais têm suas próprias formas de entender e narrar o passado e, não raro, essas narrativas múltiplas desafiam a hegemonia das epistemologias dominantes, em sua maior parte, eurocêntricas, e trazem à tona conhecimentos marginalizados e ditos subalternos (MIGNOLO, 2005).

Bourdieu complementa essa visão ao destacar que “o poder simbólico é o poder de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão do mundo e, através disso, a ação sobre o mundo” (BOURDIEU, 1998). As estruturas simbólicas e culturais, portanto, desempenham um papel crucial na reprodução e contestação das narrativas históricas e valorizar ‘conhecimentos nascidos na luta’ e as ‘ecologias de saberes’ que emergem das experiências dos povos oprimidos (SANTOS, 2014) significa um ato de resistência e renovação no campo das disputas. 

A intersecção entre o conceito de poder como uma malha de relações e a história como uma pluralidade multilocalizada é evidente nas práticas de dominação e resistência ao longo do tempo. A história da colonização é uma história de poder exercida de maneira brutal e sistemática, mas também é uma história de resistências contínuas e a emergência de epistemologias alternativas que desafiam as narrativas coloniais. 

Empregando uma percepção rizomática extraída de Deleuze e Guattari, é possível compreender a história como uma rede de eventos e processos interconectados que desafiam as narrativas lineares e hegemônicas e abrem um novo horizonte de possibilidades de luta e resistência (DELEUZE & GUATTARI, 1995), pois se “o espaço e o tempo são moldados pelas relações de poder, e estas relações são continuamente negociadas e renegociadas” (MASSEY, 2008) dá-se vazão a geografias sociais e políticas que são constantemente reconfiguradas através de práticas de dominação e resistência. 

RELAÇÕES HISTÓRICO-SOCIAIS DE RAÇA E GÊNERO

As condições político-econômicas estruturam a marginalização das mulheres negras no Brasil, em especial da cidade do Rio de Janeiro, destacando como tais condições perpetuam desigualdades sociais e econômicas, reconhecendo o racismo como um sistema de dominação complexo que transcende fronteiras geográficas e contextos históricos específicos, interligado à lógica social global e à sustentação das estruturas do capitalismo contemporâneo, o conceito de interseccionalidade, inicialmente introduzido por Kimberlé Crenshaw e posteriormente elaborado por teóricas feministas negras como Patricia Hill Collins e Angela Davis, tal conceito é essencial para compreender como diferentes formas de opressão se entrelaçam e se sobrepõem, criando experiências únicas de discriminação e marginalização para grupos específicos, como as mulheres negras.

Ao reconhecer que indivíduos podem enfrentar simultaneamente múltiplas formas de discriminação, como raça, gênero, classe social e sexualidade, a interseccionalidade propicia uma análise complexa e holística das desigualdades sociais, Lélia Gonzalez, “A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica”, explora como as condições político-econômicas estruturam a marginalização das mulheres negras no Brasil, destacando como essas condições perpetuam desigualdades sociais e econômicas compreendendo o racismo como um sistema de dominação é uma realidade complexa que não se restringe a fronteiras geográficas ou contextos históricos específicos. Ele está entrelaçado com a lógica social global e, tal condição sustenta as estruturas do capitalismo contemporâneo (GONZALEZ, 2020).

Crédito: Especialização CPUMS

Essa discussão continua sendo central para análises críticas sobre poder, desigualdade e justiça social em escala global, compreender o papel da interseccionalidade  é essencial para entender como diferentes formas de opressão se entrelaçam e se sobrepõem, criando experiências únicas de discriminação e marginalização para grupos específicos, como as mulheres negras, uma análise mais complexa e holística das desigualdades sociais ao reconhecer que as pessoas podem enfrentar múltiplas formas de discriminação simultaneamente, como raça, gênero, classe social, sexualidade, entre outras categorias. Em vez de tratar essas formas de opressão de maneira isolada, a interseccionalidade sugere que elas estão interconectadas e influenciam profundamente as experiências de vida das pessoas.

CONCLUSÕES

O racismo se apresenta como uma constante antropológica, trata-se de uma lógica social planetarizada e condição sine qua nom para a existência e perpetuação do capitalismo. Conforme descrito, a colonialidade foi uma forma específica e particularmente agressiva de expansão desse sistema para a transposição de uma lógica de subalternização para uma estrutura de dominação racial e cultural. Essa forma, não se limitando a regulação e modulação de mercados, engendrou processos de subjetivação para produzir e impor hierarquias raciais que permitia operacionalizar a escravidão dos povos colonizados, sobretudo dos povos de origem africana. Segundo Quijano, “A colonialidade do poder não apenas se expressa na dominação econômica, mas também na dominação de todas as outras formas de vida social, tanto na vida material quanto na vida subjetiva.” (QUIJANO, 2000). Nas palavras do Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania a colonialidade é

A supremacia branca é uma forma de hegemonia, ou seja, uma forma de dominação que é exercida não apenas pelo exercício bruto do poder, pela pura força, mas também pelo estabelecimento de mediações e pela formação de consensos ideológicos. A dominação racial é exercida pelo poder, mas também pelo complexo cultural em que as desigualdades, a violência e a discriminação racial são absorvidas como componentes da vida social (ALMEIDA, 2019).

É a partir desse contexto que a Pequena África no Rio de Janeiro resgata a memória do período colonial e emerge com força renovada como um conjunto espaços simbólicos que desafiam as narrativas hegemônicas ao ensejar a celebração da herança africana e a resistência contra o apagamento e silenciamento da história e identidade do povo negro no Brasil e sua contribuição para a formação social e cultural do Brasil. 

Crédito: Especialização CPUMS

Assim, ao servir como plataforma de reapropriação da herança histórica da comunidade negra do Rio de Janeiro, a Pequena África localizada na região central da cidade, foi um espaço vital para a preservação e expressão da cultura afro-brasileira durante séculos, este bairro não apenas abrigou uma grande população negra desde os tempos da escravidão, mas também foi um centro de resistência cultural, onde práticas religiosas, músicas, danças e tradições culinárias foram preservadas e celebradas.

Além disso, a Pequena África se tornou um símbolo de luta por reconhecimento e justiça social, refletindo as contribuições significativas da comunidade negra para a identidade cultural e histórica do Rio de Janeiro, apresentando uma compreensão mais profunda da diáspora africana no Brasil e das complexidades da construção da identidade afrodescendente em um contexto urbano. Não apenas resgata sua identidade, mas também contesta a lógica colonial hegemônica que ativamente empreende esforços para manter o status de subordinação de narrativas e epistemologias que lhe confrontam. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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