Heranças e desafios da questão regional no Brasil ante a pandemia: ensaio em homenagem a Celso Furtado e Wilson Cano
Boletim nº 34 – 03 de setembro de 2020
Por Tania Bacelar de Araújo¹ e Fábio Lucas Pimentel de Oliveira²
INTRODUÇÃO
O debate da Questão Regional brasileira tem, nos trabalhos de Celso Furtado (1920-2004) e Wilson Cano (1937-2020), contribuições basilares acerca dos caminhos e descaminhos do desenvolvimento capitalista em um País subdesenvolvido, diverso e heterogêneo como é o Brasil. As ideias que eles empreenderam seguem fundamentais, não apenas para compreendermos essa trajetória, mas também para colocá-la em face das desafiadoras circunstâncias da pandemia. De onde estamos vindo? O que nos desafia em tempos de pandemia? Buscar essas respostas é pré-condição para assumir, como eles, o compromisso da permanente atualização de análises e estudos capazes de subsidiar um projeto de Nação. A reflexão sobre a dinâmica das desigualdades regionais brasileiras tem muito o que contribuir com esse inadiável debate.
1. A QUESTÃO REGIONAL: DE ONDE VIEMOS
Nos estudos de Celso Furtado e de Wilson Cano, a formação econômica e a industrialização do Brasil foram centrais para entender a exacerbação da Questão Regional em meados da década de 1950. Explicitada com maior força no Nordeste, já então ela prenunciava os desafios do longo processo de afirmação do Brasil-Potência industrial do século XX. As profundas desigualdades sociais e regionais que marcavam a economia brasileira embasaram políticas regionais explícitas em escala macrorregional, sendo aquela pensada para o Nordeste a de maior destaque, mas não a única. Tais políticas ajudaram a atenuar as diferenças legadas pela concentração do desenvolvimento capitalista no Sudeste.
A experiência originária dessas políticas sucumbiu com a democracia, em 1964. A partir de então, os governos militares patrocinaram a expansão da ocupação territorial do Brasil rumo a Oeste. A marcha sobre os cerrados chegou ao “arco do desmatamento” na Amazônia, criando bases produtivas lideradas pelo agronegócio voltado à exportação. Houve, ainda, o fomento a vários polos e a consequente dinamização regional permitiu o registro de certa desconcentração, reforçando a integração produtiva entre o Sudeste e as demais regiões do País.
A crise da dívida, nos anos de 1980, freia esse movimento anterior e afeta, em particular, o centro de comando do capitalismo nacional. As dificuldades de financiamento do Estado brasileiro, os descaminhos liberais dos anos de 1990, a guerra fiscal fratricida e tantos outros desvios atestavam a dificuldade de o Brasil prosseguir seu processo de desenvolvimento sob o comando da industrialização. Dinâmicas regionais específicas emulavam um movimento de desconcentração regional espúrio, enquanto a grande São Paulo perdia força como locomotiva industrial do País.
Clélio Campolina mostrou o mesmo processo, chamando a atenção para a formação de um novo polígono industrial contido entre Belo Horizonte, Uberlândia, Londrina/Maringá, Porto Alegre, Florianópolis e São José dos Campos. A guerra fiscal, a busca de recursos naturais ou de recursos humanos qualificados, a oferta de boa infraestrutura logística e outros fatores dispersavam investimentos industriais e novas dinâmicas subnacionais foram observadas.
Ainda assim, a economia brasileira se via ante dificuldades, porquanto se iniciava – conforme alertara Wilson Cano – um inédito processo de desindustrialização. As forças produtivas do País, ao optarem por estratégias concorrenciais defensivas de proteção patrimonial, não foram capazes de se reposicionar frente a mudanças que ocorriam no mundo, tendo em vista a nova revolução industrial que se firmara e o maior protagonismo do terciário moderno, propagador de inovações tecnológicas. Em A construção interrompida, escrito por Celso Furtado na década final do século passado, fica evidente um sentimento que nos assalta ainda hoje: o de que o Brasil, apesar de suas evidentes potencialidades, tem muitas ameaças para se consolidar como Nação e, sobretudo, como protagonista de novos tempos.
No início do século XXI, com a industrialização claudicando e o Brasil mergulhado firmemente na financeirização, uma janela de oportunidade se ofereceu ao País, que avançara na reconquista democrática. Foram significativas as experiências de combate ao problema central das desigualdades sociais, sobretudo as de renda e de acesso a alguns serviços públicos. As políticas regionais explícitas continuaram pouco relevantes, embora fossem exercidas em escalas subnacionais. Efetivas foram outras políticas econômicas e setoriais, cuja natureza implícita – assim qualificadas por não terem, necessariamente, objetivos espaciais específicos – contribuiu para a atenuação das desigualdades regionais. Essa latência foi observável mesmo à escala das macrorregiões, uma vez que as economias do Norte, do Nordeste, do Sul e do Centro-Oeste cresceram acima da média nacional e do Sudeste, entre 2002 e 2017 (Gráfico 1).
Gráfico 1. Brasil e Grandes Regiões: índice de crescimento (2002=100) e variação do Produto Interno Bruto (%), 2002-2017
Fonte: IBGE – PIB dos Municípios. Nota: valores corrigidos a preços de 2017 (IGP-DI, FGV)
Bases produtivas diferenciadas – setorial e regionalmente – tornaram o tecido econômico e social brasileiro mais complexo, estimulando o resgate de um potencial que ficou adormecido em tempos de êxito do comando da indústria de transformação: a fantástica diversidade regional brasileira, materializada em um País com seis biomas, distintos processos de ocupação humana e formação socioeconômica. Há que se vislumbrar, na valorização do diverso, uma oportunidade de reconstrução de diálogos sociais, políticos e acadêmicos.
É por isso que resulta difícil explicitar a espacialidade econômica brasileira apenas à escala das grandes regiões. Com o auxílio da Figura 1, as características de diversidade, desconcentração e dinamismo podem ser pormenorizadas. A evolução da participação do Valor Adicionado Bruto (VAB) das mesorregiões geográficas no VAB total do País, entre 2002 e 2017, revela que a porção Centro-Norte do território brasileiro ganhou relevância, o mesmo ocorrendo em áreas interioranas comandadas por uma emergente rede de cidades médias.
Figura 1. Brasil: participação (%) do total do VAB das mesorregiões no total do VAB do Brasil, 2002/2017
Fonte: IBGE – PIB dos Municípios, SIDRA EstatGeo
A despeito da persistente concentração produtiva, o movimento apontado na Figura 1 reflete efeitos relevantes, associados ao fomento a arranjos produtivos locais, à expansão e interiorização da base de produção científica de conhecimento instalada em universidades e institutos federais, ao programa Territórios da Cidadania, ao Programa de Aceleração do Crescimento e ao Programa Minha Casa, Minha Vida. Também foi importante a constituição de infraestrutura econômica (portos, aeroportos, ferrovias, hidrovias, energia) em mesorregiões exportadoras, bem como os investimentos públicos e privados nas indústrias petroquímica, automobilística e naval, com destaque para o Nordeste. Essa trajetória, iniciada em 2004, foi brevemente refreada pela crise econômica de 2008 (Gráfico 1). Mas, então, o Brasil já era social e regionalmente menos desigual, o que facilitou a rápida saída da crise, conforme atestam as taxas de variação anual do crescimento de 2009 e 2010.
Mais desafiadora, certamente, é a superação dos problemas originados após 2011, que se somaram a questões estruturais e contradições não-resolvidas, mesmo em período de bonança. O esgotamento do padrão de crescimento erodiu o resultado primário do Governo a partir de 2012, tornando-o deficitário em 2014. O ajuste fiscal proposto não foi à frente, revelando o descompasso entre os poderes executivo e legislativo. As grandes manifestações de 2013 e o desgaste provocado pela Operação Lava a Jato desmantelaram, de vez, a já rarefeita base de sustentação política governamental. Esses fatores, que levaram o País a uma recessão no biênio 2015-2016, refletem-se na combinação de duas crises – uma econômica, outra política – que se retroalimentam e nos fragilizam, interna e internacionalmente, ainda hoje. Exceção feita ao Norte e ao Centro-Oeste, o País ainda não recobrou, mesmo após tímida recuperação em 2017, o patamar produtivo registrado em 2014. Tendo em vista a conjuntura problemática do biênio 2018-2019, bem como a forçosa desaceleração de 2020, essa situação não foi, certamente, revertida.
2. A QUESTÃO REGIONAL E A PANDEMIA
É nesse quadro de grande vulnerabilidade que tivemos de nos deparar com uma pandemia que se impôs com surpreendente rapidez. Além das mencionadas crises econômica e política, o Brasil viu, no ano de 2020, geminar-se outra crise, de natureza sanitária. E, apesar da importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e da tradição e pioneirismo do País em pesquisas sanitaristas, marchamos – debilitados pela cegueira liberal – para ser um dos exemplos de baixa capacidade de resposta à enfermidade causada pelo coronavírus, atestada pelas mais de 115 mil mortes e 3,6 milhões de casos oficialmente registrados no início da última semana de agosto.
Na leitura espacial feita por Miguel Nicolelis, o mapeamento da doença dialoga, de maneira clara, com as heranças do processo de ocupação econômica do Brasil e com as rotas de fluxos de mercadorias e pessoas que construímos. Os mapas são muito familiares aos que tentam entender e explicar o desenvolvimento regional brasileiro. Salta aos olhos a sobreposição das grandes concentrações, do tipo Leste-Oeste e Sul-Norte, com o ataque espacial do vírus, vindo pelos aeroportos litorâneos das grandes metrópoles, com São Paulo no comando, para depois se interiorizar, conforme cartografou o Grupo de Geógrafos para a Saúde (Figura 2).
Figura 2. Brasil: COVID-19 e as estruturas territoriais brasileiras
Fonte: Grupo de Geógrafos para a Saúde (UEM/Unesp/UFES/Instituto Adolfo Lutz).
Ali, no litoral, o novo coronavírus encontra outra de nossas heranças: o Brasil urbano e moderno, mas profundamente desigual, que impõe padrões de vida desumanos a amplos contingentes, chamados, de repente, a ficar em casa, sem ter as mínimas condições para isso. As taxas de mortalidade, além da precária cobertura de serviços básicos, como a oferta de água tratada e esgotamento, falam por si. No sentido Sul-Norte, a fragilidade da rede do SUS e o quadro socioeconômico, prevalecentes no Norte e Nordeste, também se revelam, enquanto as regiões Centro-Oeste e Sul estiveram, nos últimos meses, sob ataque mais intenso.
É indiscutível que estamos frente ao maior desafio de muitas gerações. A maneira pela qual o País estruturará a saída para o atual impasse influenciará novos encaminhamentos para a Questão Regional, mas também deverá ser, por ela, influenciada. Tanto é assim que, em face da resistência e recusa do Governo Central à imprescindível tarefa de coordenar estratégias nacionais de enfrentamento à pandemia, as novidades institucionais de maior protagonismo, no Brasil, vêm sendo encampadas pelos entes federativos subnacionais.
Destaca-se, em primeiro lugar, o papel dos Governadores – em articulação com o Congresso Nacional – para promulgar a Lei Complementar nº 173/2020, estabelecendo o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Além de assegurar a entrega de R$60 bilhões a Estados e Municípios para fazer frente aos impactos econômicos ocasionados pela pandemia, o programa estabeleceu um padrão emergencial de gestão das finanças públicas, mais tolerante com a execução de gastos subnacionais deficitários no exercício de 2020. Não menos relevante tem sido a experiência do Consórcio Nordeste: embora tenha nascido de uma pactuação prévia à pandemia, ele velozmente se reestruturou para, através de seu Comitê Científico, liderar – de forma colegiada – ações de grande alcance para a região e de valioso significado para o resto do Brasil.
Sinal dos tempos, rumo a uma repactuação que coloca a coordenação à frente da competição subnacional no federalismo brasileiro, requerendo alternativas à centralização de capacidades governativas na União?
3. AMEAÇAS E DESAFIOS
Os desdobramentos pós-pandemia são uma incógnita, mas é certo que uma agenda ampla surge e se amplia. No cenário mundial, via-se, desde finais do século XX, o avanço de uma nova era, marcada por mudanças fortes nos padrões tecnológicos, produtivos e de consumo. A ascensão asiática, liderada pela China, coincide com as dificuldades americanas, gestando um ambiente geopolítico com traços de multipolaridade. A pandemia tende a acelerar essa tendência e um momento rico de debate se anuncia. Alguns países já se posicionaram, como a Alemanha, propondo alargar a percepção de renovação dos valores que aquele processo portava. Isso inclui uma retomada verde da economia e, em parceria com a França, a disseminação, mediante um pacote amplo, de apoio diferencial aos países da União Europeia que aderirem a essa iniciativa.
Isso joga luzes sobre outro tema trazido ao debate pela pandemia: a crise climática. Entendido no âmbito da questão ambiental, o aquecimento global é a contraface de padrões de consumo supérfluo – cuja insustentabilidade, aliás, houvera sido apontada, ainda nos anos de 1970, por Celso Furtado em O mito do desenvolvimento econômico. As circunstâncias explicitaram, ainda, a exacerbação de práticas antrópicas agressivas em relação aos biomas naturais, forçando animais silvestres a abandonar seus habitats e a se aproximar de seres humanos, facilitando a transmissão de vírus diversos.
Por sua vez, as consequências da trajetória histórica de concentração de renda, destacada em escala global por Thomas Piketty, ficaram ainda mais evidentes. Produto da inflexão nos padrões produtivos da década de 1970 e cada vez mais sujeito à acumulação flexível, o desemprego estrutural caminhará ao lado de uma crescente informalização do trabalho, quando não da precarização sob o manto do empreendedorismo de necessidade, tal como ilustra o fenômeno da uberização. É preciso, por isso, aprofundar o debate acerca das ações em torno à renda mínima universal.
O Brasil, na esteira de resultados ruins na luta contra o vírus, vai herdar um ambiente econômico e social agravado pela instabilidade política que corrói sua credibilidade internacional e dificulta a construção de um projeto de saída da crise. O consenso que se formou em torno a ações emergenciais encampadas pelo Estado, seja no campo progressista ou conservador, certamente irá se desfazer quando os piores momentos da pandemia forem superados. O Governo tentará insistir no avanço de uma agenda liberalizante como único caminho para pagar a conta da crise, depois de haver relutado em auxiliar famílias, pequenas empresas e governos subnacionais. A aposta provável será na ampliação do ajuste fiscal e no aprofundamento do desmonte do Estado Nacional, ao invés de reorganizá-lo para os novos tempos, observando a diversidade do País e o simples fato de que a mesma medida não serve de maneira equânime para todos os entes da federação. Uma vez que essa agenda se prenuncia a cada instante, pode-se antever que o curto e o médio prazo não serão nada fáceis, sobretudo para a massa de brasileiros e brasileiras vulneráveis que carecem de medidas de proteção.
A questão regional dialoga com um eventual projeto de médio e longo prazo do Brasil, mas, para isso, deve-se partir da premissa de que o País deseja encampar um reposicionamento estratégico em um Mundo em ebulição, pleno de ameaças. A contar da imperiosa necessidade de retomar investimentos em Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação (em todos os níveis), áreas desprezadas pelo Governo Federal – quando, no mundo inteiro, os Estados Nacionais são protagonistas históricos de seu financiamento. O peso das heranças de desigualdades sociais e regionais se fará sentir pelo País, mais ainda porque o futuro vai requerer mais do que o já difícil engate nos novos padrões industriais e produtivos.
À diferença do passado, não cabe apostar em uma única locomotiva carregando outros vagões. É tempo de construir frentes de expansão diversas pelo País, realizando uma leitura regional do potencial diferenciado do território brasileiro, respeitando as diferenciações ecológicas. Uma forma de proporcioná-las é mediante a realização de investimentos estratégicos de corte nacional, para o que a constituição de novas infraestruturas é fundamental. Destaca-se o potencial de exploração e geração de energias limpas e renováveis, como os parques eólicos e solares. Mas também as telecomunicações, um serviço básico em tempos em que se prioriza a circulação de dados e imagens, com elevada capacidade de engajar provedores locais organizados na forma de pequenos negócios, como ensina a experiência do Nordeste.
Deve-se atentar, porém, para a ameaça de uma nova fonte de exclusão social: a digital. Por isso, a expansão de tecnologia requer uma atuante luta pela ida da internet a localidades pequenas e ao ambiente rural. Não se pode deixar de encampar renovadas articulações entre a indústria e os serviços especializados, orientando-se pela reindustrialização da economia, com vistas a explorar novas aptidões.
É nesse sentido que Carlos Gadelha vem destacando a importância de fomentar investimentos no complexo econômico industrial e terciário da saúde, cujas sementes estão plantadas em muitas regiões Brasil afora. Viabilizá-los permitiria superar dificuldades que estiveram associadas à obtenção de produtos fundamentais – embora simples, do ponto de vista tecnológico – ao enfrentamento do coronavírus, como equipamentos de proteção individual e respiradores. Essa incapacidade produtiva, mais do que expressar o ônus da desindustrialização, reluz também a gritante falta de soberania nacional em um mundo organizado em cadeias globais de valor que foram, em muitos países, sujeitadas a tendências protecionistas no período mais crítico da pandemia.
Como se vê, a leitura de desafios futuros tende a ser acompanhada pela identificação de sua regionalidade e, provavelmente, muitas surpresas surgirão para os que não conhecem o Brasil a fundo. Uma nova era de políticas regionais deve emergir, agora pensadas em múltiplas escalas – da nacional à macrorregional, da subnacional à local – e envolvendo múltiplos agentes.
A rede de Universidades espalhadas pelo País, conhecedora de nossa diversidade, é um ativo à disposição dos formuladores desse novo projeto para o Brasil. Nele, a questão regional deve ser tratada na partida, e não apenas com políticas compensatórias e implícitas, como o foi em um passado não tão distante. Para tanto, o entendimento das desigualdades regionais no Brasil, tributário do labor de Celso Furtado e de Wilson Cano, é uma premissa para que o olhar geral sobre o desenvolvimento se converta em instrumento da luta pela construção de país mais junto, includente e sustentável.
¹Professora emérita da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
²Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).