Infodemia: epidemia brasileira em tempos de Coronavírus

Boletim nº 13 – 26 de março de 2020

 

Por Alan Meira¹, Matheus Barbosa¹ e Lalita Kraus²

 

O presente texto é formulado a partir da pesquisa intitulada: “Whatsapp, opinião e políticas públicas”, desenvolvida atualmente no LabEspaço do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em tempos de pandemia causada pelo Covid-19, o que não recua é a epidemia da fakenews. Acompanhamos 50 grupos de direita e pró-Bolsonaro com o intuito de compreender a gênese, a natureza e o impacto de sua produção discursiva. Nos grupos são compartilhadas diariamente mensagens e mídias, podendo chegar a 1000 mensagens por dia, sobretudo em ocorrência de fatos políticos relevantes, como no caso da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Ao mesmo tempo, novos grupos são constantemente criados tecendo uma rede hiperconectada.

Sabemos que a informação é um dos pilares fundamentais de qualquer sistema democrático, sendo determinante para a formação do sujeito enquanto ser político. Ao mesmo tempo, a informação possibilita e determina a formação da opinião pública. Nesse sentido, o Whatsapp se tornou um espaço importante de troca de informações de qualquer natureza e de consolidação de opiniões. Nos grupos pró-Bolsonaro se produzem e compartilham discursos que consolidam posições misóginas, racistas e homofóbicas, assim como teorias conspiratórias que apresentam o Bolsonaro como salvador da pátria contra as ideologias inimigas comunistas, esquerdistas e petistas. Mas como esses grupos interpretam e reagem aos acontecimentos epidêmicos do COVID-19?

Em um momento trágico de pandemia a informação é fundamental para conscientizar a população, incentivar ações e medidas individuais e coletivas de prevenção, assim como atitudes solidárias. Trata-se de um momento em que é necessário evitar a propensão a atitudes individualistas para pensar o bem comum. Mas, infelizmente, a trágica pandemia do COVID-19 gerou uma perigosa “infodemia”, a proliferação do vírus da desinformação. Esse vírus é mortal quando, como no caso do Irã, leva dezenas de pessoas a beber álcool adulterado por acreditar em boatos que apresentavam curas para o coronavírus. E, em geral, pode ser mortal quando desorienta a ação individual e coletiva.

No período de 04 a 23 de março, um dos principais assuntos comentados foi a responsabilização da China pela disseminação do vírus (Imagem 1). Assim, é disseminada a teoria do “vírus chinês”, iniciada pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reproduzida pela família Bolsonaro e compartilhada nos grupos de Whatsapp. Desta forma, a pandemia é instrumentalizada politicamente, de maneira oportunista, para atacar o grande inimigo: o comunismo! Isso é feito reproduzindo teorias conspiratórias que interpretam o vírus como uma nova arma biológica de desestabilização global (Imagem 2), pois seria “muita coincidênciaesse vírus ter vindo de uma cidade onde tem um laboratório que trabalha com armas biológicas” (conversa do Whatsapp). Através disso “a China coloca o mundo inteiro de joelhos e acaba de ganhar a 3ª guerra mundial sem dar um tiro com seu golpe de mestre sujo comunista: Corona Vírus”! (conversa do Whatsapp). Isso confirma a tese segundo a qual os movimentos populistas de direita sempre usaram, ao longo da história, teorias conspiratórias para instaurar o medo, ganhar o consenso e se autopromover como alternativa política. Mas onde fica, diante do incidente diplomático provocado em relação à China , o interesse pela saúde pública, sobretudo considerando que o Brasil depende fortemente de importações de insumos farmacêuticos para a produção de medicamentos e que a China é o principal exportador?

(Imagem 1)

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(Imagem 2)

O presidente Bolsonaro em muitas ocasiões caracterizou o atual momento como sendo tomado pela “histeria” como ressalta em entrevista à Rádio Tupi (16 de março): “Esse vírus trouxe uma certa histeria (…) A vida continua, não tem que ter histeria”. Em discurso dado no dia 22 de março, quando só na Itália o vírus já tinha matado mais de 5000 pessoas, o Presidente afirma: “Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”. Por isso, não surpreende que nos grupos apoiadores do Presidente apareçam inúmeras mensagens que ridicularizam a seriedade da pandemia e apresentam o que para eles seriam os verdadeiros vírus no Brasil: Lula, o STF e a mídia esquerdista, entre outros (Imagem 3).

(Imagem 3)

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(Imagem 4)

A total ignorância ou desconsideração dos fatos, como as mortes e a superlotação dos hospitais europeus, é alimentada pela disseminação e viralização de mensagens que negam a importância de medidas preventivas como o isolamento social, conforme mostrado na transcrição do seguinte áudio: “tem que pegar esse vírus aí e viver com ele, algumas pessoas vão morrer outras pessoas vão viver e a maioria 99% vai viver; agora quem já tá lá em estado falimentar realmente vão dizer que morreu de coronavírus, morreu porque tinha que morrer mesmo. Galera vamo parar com isso, vamo parar com esse mimimi (…) não aguento mais essa palhaçada de ficar em casa” (Áudio grupo Whatsapp).

No dia 25 de março, apesar dos incrementos exponenciais dos contágios e das medidas recomendadas pelos organismos internacionais (Organização Mundial da Saúde e Organização das Nações Unidas), em pronunciamento dado em rede nacional, o Presidente negou a importância da quarentena e do fechamento do comércio, culpabilizando a mídia por espalhar o medo. No final, ele insiste, o vírus seria “apenas uma gripezinha ou resfriadinho” e, se o vírus é perigoso apenas para as pessoas de grupos de risco (idosos e pessoas com patologias), “por que fechar as escolas?”. Após o pronunciamento os grupos bolsonaristas começaram a comentar, apoiar e compactuar com esse posicionamento de forma histérica (e nesse caso, podemos sim falar em histeria!). Os fatos, portanto, não importam mais, as recomendações do mundo científico se tornam irrelevantes. É o reino da pós-verdade no qual o objetivo e o racional perdem peso diante do emocional ou de crenças pessoais.

É importante ressaltar que boatos no Whatsapp tiveram efeitos devastadores em muitos países provocando motins, linchamentos e mortes porque são capazes de desinformar, atiçar os instintos mais primitivos e colocar em risco a vida humana .  Em 2018, no México, um homem foi queimado vivo devido a um boato relativo ao envolvimento num caso de estupro. No mesmo ano, na Índia, um boato parecido provocou o linchamento e a morte de 31 pessoas. Qual poderia ser o efeito provocado por rotular as medidas de enfrentamento do COVID-19 como resultado de histeria e do “mimimi”?

Além do viés conspiratório e do negacionismo de fatos, o fenômeno da desinformação se alimenta de mentiras. Essas são um poderoso instrumento político porque surgem sempre com uma finalidade específica e têm o poder de gerar efeitos reais. Muitos boatos sobre possíveis curas e formas de prevenção do coronavírus circularam nos grupos, como esse áudio mostra em relação ao uso da hidroxicloroquina como possível tratamento: “Procede guerreiro (..) eu trabalho na marinha americana, quem estava infectado, quem queria ser cobaia para testar (…) e testaram e a pessoa ficou boa em 72 horas então é um milagre de deus, meu irmão. A empresa Bayer que é americana, tem aí no Rio de Janeiro né, já foi autorizada a produzir esse medicamento, essa droga para distribuir (…) a ordem do presidente é distribuir para os países aliados [com o] Brasil, graças a Deus, é um país aliado dos Estados Unidos, graças ao Bolsonaro, porque o Lula tinha se afastado do governo americano, essa é a nossa vantagem. Que Deus seja louvado toda honra e glória para o nosso senhor”. Esse áudio condiz com as declarações públicas falaciosas do Presidente Bolsonaro e Donald Trump. Na verdade, a hidroxicloroquina e a cloroquina estão ainda em fase de teste mas, mesmo assim, essa informação falsa gerou o pânico e uma corrida às farmácias, até mesmo por quem não apresentava nenhum sintoma da doença. Isso levou ao fim o estoque necessário para os pacientes que tomam o medicamento de forma contínua para outras graves patologias como o Lupus e Artrite.

O fenômeno da “infodemia” é causada, agravada e incentivada por um conjunto de elementos que caracterizam a dinâmica comunicacional no Whatsapp.

Os usuários podem ser descritos como pessoas comuns que, por serem parte de grupos que apresentam afinidade ideológica e se organizam em torno de um sentido comum, sentem-se membros de uma “comunidade”, de uma família virtual. Isso cria

uma sensação de empoderamento. Por isso, muitas vezes aquilo que circula nos grupos é encarado com mais confiança, incluindo as inúmeras fake news, e compartilhado de forma viral na onda da emoção. Cria-se uma espécie de corrente de compartilhamento que é movida por emoções atiçadas pela natureza provocatória de muitos dos conteúdos, como por exemplo o ódio ao PT ou a qualquer potencial “inimigo do povo brasileiro”, assim como é comumente definido nos grupos.

Além disso, a naturalização do uso das mídias sociais mascara um sistema invisível de manipulação. Encontramos os mesmos administradores em muitos grupos e isso pode ser resultado de uma estratégia política, ao invés de um processo de construção espontânea de uma esfera pública. Porém, os usuários acham que o grupo é autêntico e espontâneo, ignorando a existência de uma estrutura superior, invisível, que prepara e direciona determinado conteúdo. Assim, no Whatsapp é praticada uma estratégia de distribuição de mensagens microdirecionada e profundamente assimétrica já que ignorada pela maioria. Dessa forma, a digitalização do populismo de direita potencializa a sua capacidade de influência direcionando o conteúdo e permitindo que o mecanismo seja replicado por qualquer pessoa da rede, como um verdadeiro exército de propaganda, enquanto o populismo tradicional contava principalmente com o carisma do líder.

Em muitos casos, as notícias não possuem a fonte, dificultando a checagem de sua veradicidade. Em outros casos, notícias sensacionalistas oriundas de blogs ou jornais de direita, como o Jornal da Cidade, provêm de plataformas que possuem um modelo de negócio baseado na propaganda e precisam comercializar a atenção dos usuários para expô-los à propaganda e gerar um maior lucro. A melhor forma de atrair audiência é através de conteúdos que atiçam emoções extremas como a raiva, o medo e o ódio. Assim opera o capitalismo das emoções, incentivando a produção e a divulgação de conteúdos sensacionalistas, sem nenhum comprometimento jornalístico com os fatos.

Se, por um lado, assistimos ao show de desinformação, por outro, estão sendo tomadas medidas que comprometem o acesso à informação por parte da população. Desde a sua eleição, o atual governo age de forma opaca e não transparente, e no dia 23 de março de 2020, aproveitando-se da pandemia, aprovou a medida provisória n°928, que ameaça a Lei de Acesso à Informação suspendendo os prazos máximos para respostas às consultas. Ou seja, o estado de calamidade pública abre um precedente perigoso que tem a transparência e a informação como principal vítima.

Diante desse grave cenário,  como se defender da infodemia em tempos de COVID-19? Eis a questão.

¹Graduandos do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (IPPUR/UFRJ).
²Docente do IPPUR/UFRJ.

Notas:

1. https://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/coronavirus-27-pessoas-morrem-apos-beberem-alcool-adulterado-por-acreditarem-em-fake-news-24294387.html

2. BERGMANN, E. Conspiracy and populism: the politics of misinformation. Palgrave Macmillan, 2018.

3. Shakuntala Banaji et al. WhatsApp Vigilantes: An exploration of citizen reception and circulation of WhatsApp misinformation linked to mob violence in India. Department of Media and Communications, London School of Economics. Disponível em: https://blogs.lse.ac.uk/medialse/2019/11/11/whatsapp-vigilantes-an-exploration-of-citizen-reception-and-circulation-of-whatsapp-misinformation-linked-to-mob-violence-in-india/

4. https://www.bbc.com/news/world-latin-america-46145986

5. https://www.news18.com/news/immersive/death-by-whatsapp.html

6. Cesarino, L. Populismo digital: roteiro inicial para um conceito, a partir de um estudo de caso da campanha eleitoral de 2018, 2018. Disponível em:  https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_

7. https://theintercept.com/2019/11/19/fake-news-google-blogueiros-antipetistas/