IPPUR participa do XX ENANPUR
Boletim nº 71, 30 de junho de 2023
O IPPUR marcou presença no XX Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR), que ocorreu entre 22 e 26 de maio na cidade de Belém, no estado do Pará.
O corpo social do IPPUR esteve presente na coordenação de 2 mesas redondas, 2 sessões especiais, 11 sessões livres e 2 sessões temáticas. Além disso, foram apresentados 31 trabalhos e lançados 6 livros envolvendo pesquisadores do instituto.
A participação do corpo social do IPPUR contribui com o tema do evento, “ANPUR 40 anos: novos tempos, novos desafios em um Brasil diverso”, trazendo reflexões críticas sobre urbanização, urbanidades, questão urbana, desenvolvimento regional, segurança hídrica nas cidades, neoextrativismo, tecno políticas urbanas, conflitos territoriais, entre outros temas.
O objetivo do evento era tornar “possível o reposicionamento do campo dos estudos urbano e regional no Brasil de modo mais compatível com a diversidade observada nas regiões e nos espaços urbanos do país, abandonando tentativas de construir sínteses gerais e homogeneizantes”. Nesse sentido, quatro estudantes do programa de pós-graduação do IPPUR, que participaram do evento em Belém, produziram relatos pessoais, apresentados a seguir, que destacam o espaço de diálogo e a inclusão de temas relativos à raça, gênero e tecnologia no campo do planejamento.
Relato de Wladimir Valladares, mestrando do IPPUR
Se por um lado, as expectativas sobre o alcance de possíveis avanços na maior absorção do tema da questão racial na XX ENANPUR, que, teve como tema a “ANPUR 40 anos: novos tempos, novos desafios em um Brasil diverso” se mostravam elevadas, por outro, ralentava-se o ceticismo dos que perseveram nos estudos e na busca por uma maior introdução do debate da questão racial no campo de planejamento urbano e regional.
O que se observou em Belém, foi uma intersecção dessas expectativas, um misto de desalento e esperança. O desalento criado pelas estruturas formais no trato com a temática, pois mesmo se dedicando uma sessão temática ao debate de “Gênero, etnia e diversidade no campo e na cidade”, que teve como foco central as questões de orientação e gênero, sob um enfoque intersecional, o que em si já representa um avanço, o que se observou foi uma diluição da questão racial em um caldeirão de temas, que por mais importantes que o fossem, e o são, tratam a questão racial lateralmente, sem o devido aprofundamento.
Aqui façamos circunstancial justiça à curadoria do encontro, pois este se faz com o que se produz e lhe é entregue e é aí que reside a esperança dos que saíram com a sensação de copo meio cheio. Apesar das estruturas formais do encontro, mesmo que na melhor das intenções, tergiversar-se sobre o tema racial, ele estava ali, no cerne de diversas das produções e exposições realizadas ao longo do evento.
Se, por um lado, Belém não tenha representado uma epopéia quantitativa de participação de pesquisadores negros, o foi na qualidade dos trabalhos apresentados por um grupo aguerrido. Um grupo que, com as dificuldades já conhecidas e publicizadas, hoje resiste não apenas às dificuldades de existência em uma academia ainda, em sua essência, resistente às novas teorias do conhecimento e formas de construção de saberes. Hoje há a necessidade de se afrontar retrocessos civilizatórios, epistemicídio audaz que tem em vista apagar as conquistas realizadas a duros passos.
Belém, cidade complexa e de histórico de lutas negras e de povos originários, viu desfilar em ambientes predominantemente brancos, corpos, mentes e furor epistêmico a serviço do debate racial. O saldo é, portanto, positivo, pois diante de um copo meio vazio, com elegância e dignidade, a produção apresentada por uma nova geração de pesquisadores, em sua grande maioria alunos do IPPUR, o fez meio cheio. Que as águas de Belém nos inspirem a perseverar até enchê-lo.
Relato de Glaucy Herdy, mestranda do IPPUR
O XX ENANPUR já se tratava de um evento especial, pois esta seria sua primeira edição presencial após a pandemia da COVID-19. Mas outra ocorrência que marcou ineditismo nesta edição do encontro, foi a consolidação da perspectiva de gênero como uma discussão importante para o campo do Planejamento Urbano, a partir da inclusão de uma Sessão Temática dedicada e articulada ao debate interseccional de gênero e diversidade. Devido a este fato, o NUGEPP/IPPUR considerou relevante que participássemos do evento não apenas com a submissão de trabalhos1, mas enviando uma de nossas pesquisadoras para se dedicar exclusivamente à participação nas mesas desta ST, dentre outras tantas apresentações que se propuseram a tratar do debate de gênero no campo de PUR.
As discussões colocadas Sessão Temática nº 12 – “Gênero, etnia e diversidade no campo e na cidade” procuravam debater gênero, raça/etnia e território a partir de uma perspectiva interseccional, discutindo também as diferentes formas de exclusão, a LGBTfobia, o protagonismo feminino, o trabalho do cuidado etc. As responsáveis pela comissão científica que analisou os 39 trabalhos submetidos para a ST 12 foram as professoras Gabriela Leandro Pereira (PPGAU/UFBA), Grazielle Betina Brandt (PPGDR/UNISC) e Paula Santoro (FAU/USP). A professora Paula Santoro, responsável por realizar a coordenação dos trabalhos da mesa que abriu a sessão, numa sala lotada, destacou a importância daquela mesa e daquele momento como um marco para o reconhecimento da relevância das discussões feministas para o campo do Planejamento Urbano e Regional2.
Em relação aos trabalhos apresentados e discussões levantadas, pudemos notar uma grande variedade de temas, objetos de análise, metodologias e abordagens, demonstrando que a inclusão da perspectiva de gênero para o campo de PUR não está apenas pulsante, mas também em um estágio avançado de maturação, rompendo com a ideia limitante de que tratar de gênero seria apenas falar de mulheres, ou que a incorporação do debate de gênero seria um recorte dentro de uma análise maior. Dentre os diversos trabalhos apresentados, tivemos discussões que transversalizaram e interseccionaram gênero, raça/etnia, sexualidades e território no debate sobre economia política, geografia, lazer e cultura, direito à cidade, trabalho, cuidado, periferias, disputas territoriais, saúde, imigrações, zonas rurais e campesinato, mobilidade, racismo e violência. A seara por onde perpassam as discussões apresentadas, está na reflexão que a categoria analítica de gênero se refere à compreensão da corporificação das assimetrias de poder na sociedade, incorporando, através do método interseccional, outras categorias sociais e culturais para analisar de que maneira essas assimetrias se refletem em relações de dominação, segregação e exclusão materializadas também nas dinâmicas urbanas e territoriais. Essas discussões colaboram para construção de novas lentes de leitura, quadros de análise e perspectivas de compreensão dos problemas sobre os quais o campo de PUR tradicionalmente se debruça.
Vale ressaltar também que a incorporação de perspectivas feministas, da leitura generificada ou das categorias políticas de identidade, como chaves de análise transversais aos temas discutidos no encontro, não ficaram restritas apenas à ST12, aparecendo com bastante força em outras sessões temáticas3 e Sessões Livres, dando destaque para as sessões complementares “Repensar a Habitação” e “Repensar o Direito à Cidade” organizadas pelas professoras Diana Helene (FAU/UFAL) e Rossana Brandão Tavares (FAU/UFF) que tinham como objetivo ampliar a discussão feminista no campo de PUR e buscar outros públicos, adotando como estratégia a não utilização das palavras “gênero” e “mulheres” nos temas e títulos de trabalhos das mesas, já que o público masculino do evento majoritariamente não participa das sessões dedicadas a tais discussões. As duas professoras também aproveitaram do encontro para lançar o seu livro “Feminismurbana: um projeto teórico e político” que marca os 10 anos de existência do blog homônimo, criado pelas autoras em 2013 como espaço virtual para divulgação de textos, trabalhos, eventos e experiências que tratassem das desigualdades de gênero e dos feminismos a partir do território, em especial das cidades.
Em último aspecto, e alinhado com os esforços dedicados no âmbito do NUGEPP, desejamos também que os próximos encontros da ANPUR incorporem os mais recentes debates e reivindicações acerca do combate à violência de gênero no ambiente institucional e acadêmico, tanto nas produções acadêmicas, quanto nos aspectos práticos, encarando este como um dos principais fatores de adoecimento, desistências e abandono da carreira profissional por parte de acadêmicas e pesquisadoras. Há que se incorporar internamente mecanismos efetivos para letramento, coerção e punição de condutas e práticas abusivas contra mulheres e minorias na academia, tanto nos espaços do cotidiano, quanto nas extemporalidades dos eventos e encontros.
Por fim, nós no NUGEPP concluímos que a presença no evento foi bastante proveitosa, no sentido de encontrar pessoas, trocar conhecimento e conhecer pesquisas e trabalhos que se relacionem com as discussões tocadas pelo núcleo e por nossas pesquisadoras. Além disso, também ficamos satisfeitas pelas pesquisas feministas de gênero no Planejamento Urbano e Regional que estão sendo desenvolvidas pelo Brasil afora, confirmando o processo de consolidação desta perspectiva como fato incontornável para compreensão crítica da formação territorial e regional brasileira, e para uma ação dentro de PUR que leve em conta esses aspectos.
Nota 1: Uma das pesquisadoras associadas ao NUGEP, Veridiana Godoy (UFABC) apresentou parte da sua pesquisa de mestrado na Sessão Temática 12.
Nota 2: No Boletim IPPUR nº 68, o artigo destaque – que foi desenvolvido por pesquisadoras do NUGEPP – também mencionou a importância da inclusão desta Sessão para o campo de PUR.
Nota 3: Tais como a ST 6 “Cidade, História e Identidade Cultural”, a ST 8 “Movimentos Sociais e a Construção do Urbano Contemporâneo” e ST 13, “Identidade e Territórios: Adaptação e Resiliência”.
Relato de Flávio Carvalho Silva, mestrando do IPPUR
Os avanços tecnológicos têm desempenhado um papel cada vez mais proeminente em nossas vidas, moldando a maneira como nos conectamos, trabalhamos e exploramos o mundo ao nosso redor. No contexto do XX ENANPUR, um dos eventos mais aguardados na área de planejamento urbano e regional, a tecnologia se tornou uma presença constante e fascinante, não apenas na sessão temática dedicada a esse tema, mas também na sua presença casual em outros espaços de debate ao longo de todo o evento.
A abordagem tecnológica foi tão significativa no XX ENANPUR que teve na sessão intitulada “[Socio]Tecnologia para o Planejamento Urbano e Regional” um espaço prioritariamente dedicado a explorar as implicações no planejamento urbano e regional. Nessa sessão, diversos pesquisadores de todo o país apresentaram estudos de caso e discutiram as oportunidades e desafios trazidos pela tecnologia na transformação das cidades e regiões. Desde a implementação de soluções “inteligentes” até as apropriações populares da tecnologia, fazendo com que os participantes fossem expostos a um panorama abrangente do potencial da tecnologia no planejamento urbano. Focando principalmente em aspectos ou variáveis tradicionalmente omitidas ou eliminadas no modelo de planejamento tecnológico dominante, como a autoprodução do urbano, saberes e práticas coletivas, populares e/ou marginalizadas.
No entanto, a influência da tecnologia não se limitou apenas à sessão temática dedicada ao assunto. Durante outras sessões, temáticas, livres e atividades do evento, era possível identificar a presença do debate sobre tecnologia e suas implicações sociais, econômicas e urbanas. Debates como o do uso de aplicativos como ferramenta de fortalecimento da mobilização de pequenos agricultores na comercialização de produtos agroecológicos, ou como ferramenta em disputas urbanas com apropriações dominantes e subalternizadas; produção de dados para o controle dos fluxos e serviços durante a pandemia; a produção de aplicativos e soluções cooperativas ou não voltadas para garantir melhores condições de trabalho para os trabalhadores plataformizados; e a crítica epistemológica sobre o determinismo tecnológico foram algumas das discussões, que mostraram os potenciais e as principais preocupações da produção científica no campo de PUR, denunciando também a relevância do debate para uma produção mais justa do urbano contemporâneo.
Em resumo, a presença da tecnologia no XX ENANPUR foi proeminente, tanto nas sessões temáticas quanto nos encontros casuais que permearam todo o evento. Encontros que proporcionaram o compartilhamento de conhecimentos, experiências e perspectivas, fortalecendo ainda mais o diálogo e a colaboração entre os profissionais do planejamento urbano e regional e a compreensão do estado das pesquisas que trabalham, em alguma medida, a temática. À medida que avançamos para o futuro, é essencial reconhecermos e explorarmos o potencial da tecnologia como uma ferramenta poderosa para enfrentar os desafios e construir cidades e regiões, fugindo do discurso raso da inteligência e sustentabilidade, partindo para os efeitos das tecnologias no cotidiano da produção de cidades.
Relato de Tauann Domis, mestrando do IPPUR
A Sessão Temática 1, do XX ENANPUR, intitulada “Crise e reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil” apresentou, em sua primeira subseção (01.1), temas importantes para a compreensão das dinâmicas recentes às quais as questões regional, agrícola e urbana do Brasil estão sujeitas. Com temáticas que perpassaram a contextualização espacial do agronegócio e a crítica à operacionalização de seu funcionamento a partir de cidades que intermediam fluxos produtivos reticulados da agropecuária modernizada, os pesquisadores apresentaram visões e estudos críticos pertinentes ao avanço do conhecimento analítico da atual realidade do país. Além de leituras amplas sobre a reestruturação produtiva, foram discutidas também as novas fronteiras do mercado imobiliário fomentadas por fundos de investimentos nessas cidades funcionais ao agronegócio, tal qual o questionamento da acepção do Brasil enquanto provedor de alimentos no mundo, ideia esta que busca, sobretudo, legitimar uma retórica que defende a primazia ou “vocação” do Brasil para a produção agropecuária de exportação.
Além dos levantamentos sobre a política, produção e economia do setor agropecuário, foi apresentado também um estudo questionando aspectos da atual conjuntura infraestrutural no Brasil, na qual se vem observando a constante conformação como uma nova possibilidade de investimentos – processo denominado “mercadejação” –, e que gerou uma excelente provocação: será possível disputar esta arena a partir de um viés mais emancipatório da infraestrutura? Por fim, o último artigo apresentado trouxe discussões sobre como a desigualdade social e racial se inscreve na configuração das cidades ao longo do tempo, pontuando o caráter histórico da abordagem que assume o território como categoria analítica.
Do ponto de vista das autorias, percebeu-se uma relativa heterogeneidade institucional nos seis artigos apresentados, tendo sido elaborados, individualmente, por: dois representantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (um mestrando e uma professora do IPPUR), dois da Universidade Estadual de Campinas (um mestrando e um doutorando, tendo sido este representado pelo coautor, professor da mesma instituição), uma doutoranda da University of California – Berkeley, e uma doutoranda da Universidade Federal do ABC.
No entanto, apesar do lado positivo de se perceber um diálogo e sintonia acadêmica no que tange aos temas apresentados pelos representantes das diferentes instituições, pontua-se a problemática de uma aparente concentração acadêmico-institucional da discussão a partir das universidades do Sudeste brasileiro: cinco dos seis trabalhos advêm do eixo Rio – São Paulo, sendo a única não pertencente ao grupo, uma universidade estrangeira. A ironia está no fato de que, em uma das subseções em que se pretendeu discutir a crise e reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil, o próprio elenco das instituições ali representadas reafirma uma condição que historicamente embasou diferenças estruturais que culminaram/culminam numa hegemonia do Sudeste em detrimento das outras regiões brasileiras, nos mais diversos aspectos de uma formação socioeconômica (logo, espacial) desigual. Esta não é propriamente uma crítica ao evento – muito menos à organização –, mas sim ao campo de conhecimento como um todo, que indica ter, ainda, um longo caminho a percorrer para desenvolver na prática científica a mesma preocupação progressista que prevê em suas críticas teóricas.