Organizações de fé: limites e possibilidades para o “novo urbanismo”

Boletim nº 72, 31 de agosto de 2023

Organizações de fé: limites e possibilidades para o “novo urbanismo”

Rita Gonçalo

Doutora em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Doutoranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR-CCJE-UFRJ.

 

Os princípios urbanistas são matérias que devem ser atualizadas frequentemente, acompanhando as conquistas civilizatórias. Não se pode abandonar as demandas não resolvidas da modernidade, pois uma sociedade só pode ser considerada “moderna” quando entende a modernização não enquanto estágio, mas antes como um processo de transformação, quando uma sociedade se organiza tendo como núcleo central a mudança a fim de superar as necessidades básicas do homem.

As questões ambientais, de redução das desigualdades e de inclusão social são, por exemplo, temas essenciais à realidade atual das sociedades brasileiras. Isso está promulgado pelo Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/2001) e é tributário de uma luta pela reforma urbana que se origina após 1960 [1], no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU.

Pensar as cidades hoje implica formulações complexas que necessitam ser pensadas em suas múltiplas instâncias e escalas – da economia à cultura, do social à política. Para tanto, precisamos reconhecer nossos problemas contemporâneos e desenhar uma agenda de melhorias às nossas cidades. O urbanista François Ascher defendia que o caminho seja formular o que ele chamou de “novo urbanismo” – um modo de planejar cidades adequado aos “desafios e às formas atuais de pensar e agir” das comunidades (ASCHER, 2010, p. 18), considerando estas cada vez mais diversas e diferentes. O novo urbanismo reconhece que as comunidades possuem modos de vida e formas de governança próprias, então o desafio urbanista é ver o papel das organizações da sociedade civil como facilitadoras desses atuais modos de vida, como agentes que envolvem as comunidades, ajudando-as a articular suas aspirações e sendo um mediador entre a singularidade da população e a legalidade estatal para produção de bem-estar social (SANDERCOCK, 1997).

É sabido que a revolução agrícola – com o surgimento dos complexos agroindustriais nos anos 1960-70, sobretudo nos solos de cerrado – aumentou a produção alimentar, porém expulsou do campo grandes quantidades de agricultores de maneira concomitante ao surgimento do capitalismo industrial. Esse duplo processo, conforme explica Ascher (2010, p. 25) provocou um “enorme crescimento demográfico nas cidades, acarretando um crescimento espacial acelerado e gerando, ao mesmo tempo, a pauperização de uma parte das populações urbanas”. É neste processo que a diferenciação social se inscreve de modo ainda mais perceptível no espaço: com o desenvolvimento dos transportes coletivos e os bondes, formaram-se bairros residenciais de alta renda e bairros industriais para fábricas e operários.

Os poderes públicos foram levados a atuar cada vez mais tanto no campo do urbanismo quanto no campo econômico-social, principalmente para enfrentar insuficiências, incoerências e disfunções das lógicas privadas e do mercado. Instaura-se a exigência pela materialização de um Estado de bem-estar com seus equipamentos coletivos e serviços públicos que detenham habilidades de permanência, de resistência e de readaptação, de forma a acolher sucessivamente povos e formas de vida diversas.

E a redemocratização pós 88 foi um período que culminou no surgimento de múltiplos atores sociais, vocalizando demandas das bases da pirâmide social. Neste cenário as instituições religiosas foram e continuam sendo entes centrais no reposicionamento de perspectiva dos problemas públicos em nosso país.

Mais do que os problemas em questão, o que importa é o modo de lidar com eles politicamente, na medida em que questões materiais envolvem noções de justiça e um discurso público e moral que transforma a necessidade num direito. Não obstante, educação, cuidado, atenção básica à criança, aos mais idosos e aos deficientes, o combate à fome, a assistência jurídica e psicossocial estão entre as ações políticas mais praticadas pelas entidades religiosas no urbano. 

A matriz religiosa brasileira composta em grande parte por católicos (52%), protestantes (31%) e religiões de matriz africana (6%) (IBGE, 2022) desenvolveu nos últimos 50 anos uma rede de confiança e apoio mútuos entre os seus fiéis, que proporciona ajuda em momentos de vulnerabilidade pessoal e social (considerando a conjuntura de urbanização, ditadura militar e democracia republicana). À dimensão pessoal e social dos cidadãos foi dada importância de um problema para ser tratado como de pública relevância, construído coletivamente no contexto da experiência, o que levou o poder público a recorrer cada vez mais a outras organizações da sociedade civil (OSCs) – incluindo as religiosas – para assegurar todo tipo de prestações, e neste sentido, as parcerias multiplicam-se sob diversas formas. E para gerir novos problemas sociais e desigualdades, um novo tipo de regulação se esboçou: a “regulação de parceria” (ASCHER, 2010), na medida em que os atores, com lógicas diferenciadas, foram compelidos a elaborar gestões comuns, negociar compromissos duradouros e criar instituições coletivas.

Cito o marco regulatório da Lei 13.019/2014, que trata dos instrumentos de parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSCs). Já o Decreto Federal 8.726/2016 regulamenta a Lei 13.019/2014. Ambos foram promulgados durante a gestão da presidenta Dilma Rousseff. Essas leis dispõem sobre regras e procedimentos do regime jurídico que disciplina as parcerias celebradas entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil. A formalização da regulação de parcerias é realizada por meio de:

i– termo de fomento (adotado para a consecução de planos de trabalhos cuja concepção seja das organizações da sociedade civil);

ii– termo de colaboração (para a consecução de planos de trabalho cuja concepção seja da administração pública federal); 

iii– acordo de cooperação, instrumento por meio do qual são formalizadas as parcerias estabelecidas pela administração pública com organizações da sociedade civil para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco que não envolvam a transferência de recursos financeiros.

Em todas elas há a obrigatoriedade do chamamento público para seleção das organizações e diferentes etapas até a celebração e execução das parcerias entre OSCs e administração pública. 

O ditado medieval já dizia que “o ar da cidade liberta”, mas em contrapartida é a cidade, também, local de todo perigo, físico e social. Sendo ela ambivalente, faz-se necessário garantir aos cidadãos proteções diversas, e as leis que regulamentam e disciplinam os esforços conjuntos entre a administração pública e as OSCs são um dos instrumentos necessários para que um país como o Brasil, de dimensões continentais, consiga ampliar ao maior número possível de pessoas as dignidades básicas do bem viver. 

Ora, uma vez que as religiões somam a esse aspecto a formação de espaços que funcionem como equipamento urbano de multisserviço, refletindo escolhas de serem centros de suporte às vulnerabilidades sociais, elas cristalizam a ambição em definir o porvir da “boa” cidade.

O brasileiro se apoia na fé para acreditar em si e ser capaz de seguir adiante mesmo em um contexto de esgarçamento social e ausência do Estado crescentes. A fé́ é o principal valor do brasileiro, de acordo com o estudo Religião, direito e secularismo no Brasil, realizado pelo CEBRAP (2020). Consequentemente as instituições religiosas acabam detendo a confiança do brasileiro, pois são elas as promulgadoras da fé associada à esperança, que retira os brasileiros do pessimismo e os devolve um lugar no mundo e na cadeia das ações humanas. Nessa esfera acho importante ressaltar o quanto as entidades religiosas têm sido fundamentais para nossas cidades, e não podemos descartar sua contribuição que enriquece a urbanidade da cidade.

Alguns projetos com multisserviços e expressividade multissítio [2] executados por organizações religiosas urbanas:

Lar da Esperança / Sinagoga Beit Lubavicth (RJ) Farmácia comunitária; convênios com hospital israelita Albert Sabin; centros especializados para aparelho auditivo, cirurgia de catarata e recuperação pós-cirúrgica; refeitório coletivo; assistência social para imigrantes; cestas básicas; tratamento ambulatorial; atividades sociais, grupos de oração, serviços comunitários  no Morro do Borel.
ÚNICA – União Umbandista Luz, Caridade e Amor (RJ) Atendimento Espiritual; Terapia Holística; Reiki; Barra de Access; Terapia Xamânica; Massoterapia; Roda de Conversa “Sagrado Feminino”; Jiu-Jitsu; Aulas de bateria e atabaque; Aulas de inglês; Kit Enxoval distribuído anualmente mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade; Assistência jurídica; assistência odontológica; cestas básicas.
Primeira Igreja Batista de  Curitiba (PR) Auxilio-emprego (doação de vale-transporte e busca de parcerias com empresas para empregabilidade de neurotípicos, neurodivergentes, surdos e deficientes físicos);

Auxilio hospitalar: formação de intérpretes para acompanharem surdos a hospitais, consultas ou exames;

Programações culturais para surdos e deficientes visuais;

Grupo de teatro, coreografia e pagode para surdos, deficientes físicos e deficientes visuais

Elaborado pela autora (2023).

Bem-estar, seguridade, educação, diferentes esferas de justiça e práticas organizacionais mais próximas às reais demandas da sociedade são o que devemos aspirar em nossas cidades. Os exemplos mencionados reforçam que, no Brasil, Estado e as organizações de fé se cooperam, de modo que revelam a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo. No entanto, é tempo de reivindicarmos novas formas de discurso religioso mais conectado com a ação política. As teorias da relação entre o religioso e político devem também ser parte de nossa agenda, para que ambos colaborem para garantir o diálogo possível entre diferentes posições, identidades e grupos no espaço público, fortalecendo a vida associativa prolífera e seus mediadores locais.

Quanto mais as pessoas se movem, mais elas tornam possíveis as trocas, expandindo as bases sobre as quais as diferenciações e afinidades podem se apoiar. Daí a importância de a administração pública olhar com atenção para as ações promovidas pelas organizações de fé na cidade, pois o desafio para a democracia consiste em transformar essa solidariedade em uma consciência de pertencimento a sistemas de interesse coletivo (ASCHER, 2010, p. 45), priorizando a qualidade de vida e fortalecendo os equipamentos multisserviços religiosos que visam a oferecer educação, cultura, lazer e acolhimento dentro do coração do desenvolvimento local.

[1] Entre 1964 e 1978 as políticas urbanas na Administração Pública Federal criaram organismos que foram grandes marcos institucionais para a estruturação do desenvolvimento urbano no Brasil, como o BNH; IBGE; IPEA; Ministério do Planejamento e o CNDU.

[2] O mesmo que mais de um bairro; ou além do bairro.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. “Estatuto das Cidades”. Estabelece diretrizes gerais da política urbana. Recuperado em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm

BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Recuperado em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm

BRASIL. Decreto nº 8.726, de 27 de abril de 2016. Regulamenta a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Recuperado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8726.htm

CEBRAP. Religião, direito e secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil Contemporâneo. MONTERO, Paula et al. (2022). Recuperado em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/90587/religiao-direito-e-secularismo-a-reconfiguracao-do-repertorio-civico-no-brasil-contemporaneo/

GONÇALO, Rita. Urbanidade Gospel: um perfil de planejamento. Pesquisa de pós-doutorado IPPUR-CNPq (2023).

IBGE. Indicadores (2022). Recuperado em: https://www.ibge.gov.br/indicadores.html

PIB Curitiba. Ministérios Eficiente. Nossa História. Recuperado em: https://pibcuritiba.org.br/especiais/.

LAR DA ESPERANÇA (Beit Lubavitch). Quem somos. Recuperado em: https://www.lardaesperanca.org.br/quem-somos

LUPA DO BEM. Centro Cultural UNICA: fé, cultura e arte se encontram no Rio de Janeiro. Recuperado em: https://lupadobem.com/centro-cultural-unica-fe-cultura-e-arte-se-encontram-no-rio-de-janeiro/

SANDERCOK, Leonie. Toward Cosmopolis: planning for multicultural cities. New Jersey (EUA): John Wiley & Sons, 1997.