Colonialidade na cidade moderna e contemporânea: reflexões acerca do percurso Pequena África, Rio de janeiro
Boletim nº 80, 1º de julho de 2024
Vinícius Moraes Fonseca
Fabianna Vieira do Nascimento
Isabella Maria Bulus Maiolino
Discentes do Curso de Especialização em Cidade, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais – IPPUR/UFRJ
Introdução
Este breve artigo foi elaborado por estudantes do curso de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Cidade, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais, organizado pelo IPPUR e possui o objetivo de relacionar experiências vivenciadas durante a visita guiada, pelo Instituto Pretos Novos, ao Circuito de Herança Africana e o conteúdo das aulas sobre o capitalismo e a construção da cidade moderna. Foram utilizados como base teórica os textos indicados nas aulas e, principalmente, as provocações feitas pelo professor Prof. Renato Emerson dos Santos, para exemplificar com a realidade material da cidade como a colonialidade do poder se concretizou na área da “Pequena África” através dos apagamentos históricos recorrentes.
Colonialidade e Capitalismo
As discussões ao longo das aulas permitiram o contato com a perspectiva do materialismo histórico dialético e da narrativa decolonial sobre o capitalismo, que convergem no fundamento de que o crescimento e mundialização do mesmo dependeu também da construção de um imaginário hegemônico da Europa enquanto o centro do mundo (eurocentrismo). Nesse sentido, destacou-se na aula do professor Régis a necessidade de “desnaturalizar” a ideia de que o capitalismo transiciona só pelo feudalismo, em um processo interno europeu, pois dentre os fatores importantes para essa nova relação do continente europeu com o restante do mundo foram as trocas mediterrâneas e transaarianas (áreas que já detinham mercados internacionais aquecidos) e a utilização do colonialismo, definida por Quijano, como:
“uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.” (QUIJANO, 2010, pg. 73)
Portanto, esta perspectiva de dominação do hemisfério ocidental se difunde com intensidade máxima (para o comparativo histórico daquele momento) à partir da nova escala de atuação da sociedade européia durante as Grandes Navegações, que concomitantemente é legitimada a partir da consciência dupla (DU BOIS apud MIGNOLO, 2005, pg.40) da população que estava na América se definindo a partir do colonizador.
Partindo para compreensão das relações existentes na construção da cidade moderna e contemporânea do Brasil, e consequentemente do Rio de Janeiro, não podemos deixar de lado o conceito de colonialidade como crucial na hierarquização da sociedade, difundidos através da religiosidade, políticas públicas e imaginário coletivo.
A colonialidade é constitutiva da modernidade. As relações assimétricas de poder, ao mesmo tempo que a participação ativa da diferença colonial na expansão do circuito comercial do Atlântico constituído através dos séculos como Ocidente ou civilização ocidental, são o que justifica e torna necessário o conceito de “colonialidade do poder” (QUIJANO, 1997) e de “diferença colonial” (MIGNOLO, 2000)” (MIGNOLO, 2005, pag 47)
Já na leitura espacial a relação do capital com a produção do espaço urbano carrega as contradições entre poder x espaço, mudanças x permanências, centro x periferia e maquinofatura x artesanato; outros elementos embasadores nas discussões em sala e durante o percurso realizado in loco, pois visualizar as mudanças históricas na cidade que hoje se define Rio de Janeiro carrega todos os elementos citados até agora e parte da influência que exerce dentro do país e na posição que este ocupa na relação com o hemisfério ocidental hegemônico. Desse modo, o que foi a capital do Brasil – maior país em extensão de monocultura colonial pertencente a Portugal – e que também foi sede da Coroa Portuguesa, serviu de palco para as grandes transformações urbanas que possibilitaram certa inserção econômica – visto que Portugal foi invadida por Napoleão Bonaparte. A Inglaterra teve papel crucial na construção desta capital realizando pesados investimentos na infraestrutura urbana, como podemos citar não somente as obras de implantação de linhas férreas com o objetivo de escoar a produção, e de melhorias no porto; como os altíssimos registros de chegada de mão de obra de pessoas escravizadas, um dos pilares da manufatura brasileira; ou, todavia, no estreitamento da relação Portugal-Inglaterra, concretizada pela política de Abertura dos Portos, que resultou na chegada, em massa, de mercadorias britânicas a serem consumidas no Rio de Janeiro, em detrimento de uma possível produção industrial no Brasil. Tais características são registradas não somente nos anais como também na composição urbana da cidade, que massivamente sofre a violência do apagamento com sobreposições de camadas de séculos de negação e ressignificação dos espaços. Dessa maneira, nos foi possível notar que a capacidade do capitalismo de se retroalimentar e se adaptar aos novos cenários no decorrer dos séculos foi outra característica essencial para sua existência.
O que é do colonizado
Durante a visita o grupo percorreu alguns pontos nodais na área que foi intitulada “Pequena África”, por Heitor dos Prazeres em torno do séc. XX, e que desde o início do tráfico escravocrata foi povoada pela população negra africana e seus descendentes, que tiveram seus espaços de habitação e sociabilidade direcionados a costa portuária utilizada como entrada na cidade e que neste momento não era desejada para fins de permanência. Essa era uma rede complexa de áreas livres e edificadas que se compôs enquanto possibilidade de resistência a um tipo de opressão basilar na sociedade capitalista colonial.
Como contribuição para compreensão de como essa opressão se manifesta, a fala do professor Renato Emerson de que o capitalismo se utilizou do racismo para se perpetuar, se torna complementar ao que Quijano traz quando disseca as relações de classificação social no período colonial:
“A ‘racialização’ das relações de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o sustento e a referência legitimadora fundamental do caráter eurocentrado do padrão de poder, material e intersubjectivo. Ou seja, da sua colonialidade. Converteu-se, assim, no mais específico dos elementos do padrão mundial do poder capitalista eurocentrado e colonial/moderno e atravessou -invadindo – cada uma das áreas da existência social do padrão de poder mundial, eurocentrado, colonial/moderno” (Quijano, 2010, pg. 107).
A partir daqui não é possível se destituir o caráter racial de todas as observações feitas aos locais visitados como forma de reflexão crítica a construção e perpetuação desses espaços na memória coletiva atual.
Experienciação do percurso
Partindo do único exemplar do Circuito que possui reconhecimento internacional enquanto Patrimônio da Humanidade, titulado pela UNESCO em 2017, o Cais do Valongo construído com intuito de esconder o tráfico negreiro da entrada “social” da cidade (até então a Praça XV) já traz na sua concepção o apagamento da raiz visceral do mercado colonial. Durante os séculos e com as demandas de remodelação do espaço, foi sobreposto por diversas camadas, na tentativa de desconectar completamente do imaginário da cultura carioca o caminho por onde passaram seus construtores. Por consequência de uma nova camada urbana de reconfiguração do território já na contemporaneidade, a área do Cais do Valongo foi redescoberta, e por insistência dos pesquisadores e dos movimentos negros de resistência se tornou símbolo de recuperação e disseminação do valor histórico do entorno. Nesse aspecto, fica evidente que a constituição da memória também é alvo de disputas no espaço: grupos hegemônicos buscam o apagamento enquanto grupos oprimidos historicamente buscam constituir reconhecimento, reparação e pertencimento.
A partir da perspectiva da disputa pela memória no espaço urbano, o campo contribuiu com o reforço a respeito da importância da luta pela permanência de espaços de resistência, que deixam registrados os movimentos decoloniais e contra hegemônicos, por exemplo a Casa da Tia Ciata – figura central na história de resistência no Rio de Janeiro durante o século XIX e início do XX – que se apresentava como ponto de encontro para músicos afro-brasileiros que, posteriormente, constituíram o samba como gênero musical. Além disso, o espaço era refúgio, em momentos de grandes manifestações, de pessoas que lutavam pelo reconhecimento de práticas culturais de raízes africanas e que eram perseguidas pelo Estado, ao criminalizar tais manifestações relacionadas à população negra. O espaço contava também com práticas religiosas e medicinais, incorporadas pelo Candomblé – Tia Ciata tinha muitos conhecimentos de ervas e benzimentos – pois atuava como curandeira na comunidade.
No mesmo caminho, o instituto Pretos Novos (IPN) também desempenha papel crucial na consolidação da memória de milhares de povos africanos escravizados que foram mortos no Brasil no período colonial e imperial. Ao destacar as condições desumanizantes que se encontravam, ou quando eram deixados para morrer, os negros escravizados no Brasil, o Instituto amplia a compreensão dos crimes cometidos durante o regime escravocrata. Ademais, a iniciativa conta com atividades educativas, exposições, palestras e visitas de campo que incentivam e ampliam o debate e as discussões acerca da temática e, portanto, o Instituto Pretos Novos representa um espaço de resgate da identidade e da ancestralidade, permitindo que descendentes de africanos reconecte-se com suas raízes e compreendam melhor sua própria história.
Considerações finais
Ainda que se considere sua visibilidade, hoje a área denominada oficialmente “Pequena África” enfrenta uma luta de expansão desse resgate histórico. O debate sobre os reais limites do território que recebeu influências do povo africano, foi fomentado em sala de aula: um pequeno trecho do circuito histórico ganha grande visibilidade e investimentos enquanto que seu entorno direto, ligado à luta e resistência do povo preto desde sua chegada no século XVI até os dias atuais, se mantém marginalizado, fora do roteiro turístico.
Apesar do fim institucional das relações de colonização entre territórios e a formalização das relações entre Estados-Nação serem teoricamente simétricas, as hierarquias de poder foram mantidas, como Quijano afirma:
“De onde se depreende, de novo, que a colonialidade do poder implica, nas relações internacionais de poder e nas relações internas dentro dos países, o que na América Latina foi denominada de dependência histórico-cultural.” (Quijano, 2010, pg.109)
Ao fim, a experiência de passar por esses portais do espaço-tempo traz um apelo ao que foi resgatado como forma de combustível para visualizarmos novas formas de construção da cidade. Nesse sentido o professor Renato também nos orienta a um reposicionamento do ponto de vista epistêmico, valorizando narrativas negras na história que contam para além do período da escravização e a plantação de novos agrupamentos em rede, como a valorização dos novos baobás na cidade, que são símbolos de resistência e reinvenção negra neste território.
Referências
MIGNOLO, Walter D. A Colonialidade de cabo a rabo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, Buenos Aires, Argentina, p. 33-49, setembro,2005.
OLIVEIRA, Francisco. O Estado e o urbano no Brasil. Espaço e Debate: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, 1982.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.